Boa parte do país seguia inebriado, no final de Maio de 2010, com as conquistas e as provas de força e de qualidade de um Benfica que, finalmente, se preparava para interromper o ciclo triunfante do FC Porto. Pinto da Costa aproveitou, então, um jantar comemorativo na Casa de Argoncilhe para fazer uma declaração que ia contra a convicção de uma boa parte do país, crente de que o domínio benfiquista não seria um fenómeno passageiro: "Para o ano, vamos ter uma equipa à Porto, digna da história e dos pergaminhos do clube". Quase dez meses depois, a profecia está mais do que confirmada.
A verdade é que havia circunstâncias a contribuir para a ideia de que se encerrava um ciclo e se abria outro, pintado a vermelho. Desde logo, devido à força do Benfica, que, ao fim de três anos a gastar o que tinha e o que não tinha (antecipando receitas), criara um plantel de qualidade, facto determinante quando conjugado com a contratação de um treinador com a perícia de Jorge Jesus.
Outro facto a pesar foi a ideia de que o FC Porto podia estar a entrar numa fase de oxidação, como escrevemos em Março do ano passado. O risco derivava do facto de os portistas irem falhar, ao fim de muitos anos, a presença na Liga dos Campeões, onde a última participação ficara marcada por uma goleada traumatizante no campo do Arsenal. E isso poderia ter custos financeiros, não só pela ausência da Champions, mas também por deixar de existir a principal montra para os jogadores. A conjugação destes dois factores tornava-se uma dificuldade acrescida para quem acabara de prometer uma equipa competitiva, sinónimo de ordens de compra no mercado.
Nada daquilo se confirmou e o FC Porto encontrou soluções que lhe permitiram investir cerca de 30 milhões de euros em jogadores como João Moutinho, Otamendi, James Rodriguez, Walter, Souza e Emídio Rafael. E isso acabou por ser possível porque, mesmo numa época de menor fulgor dentro e fora de portas, realizou um encaixe de mais de 36 milhões de euros resultante da venda de jogadores, as principais das quais foram as de Bruno Alves e Raul Meireles. A saída destes, independente da sua muita qualidade, teve ainda o condão de passar para a opinião pública, para os adeptos e para o próprio balneário a ideia de mudança, e de que nada voltaria a ser igual.
Tão ou mais decisiva foi a mudança de treinador. Jesualdo tinha tido méritos e apresentado uma qualidade de trabalho acima de qualquer suspeita, por muito que isso custe aos seus críticos. Mas o seu ciclo estava, de facto, esgotado, em resultado das suas próprias idiossincrasias. A sua personalidade fechada e nada dada a intervenções fracturantes não o tornavam a solução ideal para um novo ciclo, até porque nunca colheu as simpatias da generalidade dos adeptos.
Foi então altura de Pinto da Costa comprovar por que consegue manter-se na primeira linha do futebol português há quase três décadas. Rescindiu com Jesualdo (sem ondas, como é apanágio na casa), mas antes já tinha conseguido desestabilizar tanto o Sporting como o Benfica. Primeiro, ao conseguir que André Villas-Boas torcesse o nariz ao acordo com José Eduardo Bettencourt - como estaria hoje o clube de Alvalade se tivesse conseguido levar até ao fim a vontade de contratar o ex-colaborador de José Mourinho? Pelo meio, conseguiu ainda meter grãos de areia na engrenagem do Benfica. A abordagem a Jorge Jesus teve o condão de garantir ao técnico um contrato milionário e ainda de lhe criar (pelo menos durante algum tempo) anticorpos no balneário e junto de Vieira.
Na aposta num treinador jovem e ambicioso, é impossível deixar de relevar a argúcia de Pinto da Costa, que continua a retirar vantagens de ser há muito o presidente em Portugal que mais entende de futebol. Mas é justo acrescentar o peso de Antero Henrique na pequena revolução que os portistas efectuaram no último defeso. Avesso ao mediatismo, o director-geral já se tinha destacado, ao longo de seis anos, pela forma hábil como ajudara a criar condições para o sucesso, designadamente nos contributos dados para que o FC Porto tenha hoje um dos departamentos médicos mais evoluídos na Europa. Foi também ele a contribuir para que o clube fosse encontrando soluções para resolver as sucessivas saídas de Paulo Assunção, Pepe, Anderson, Bosingwa, Quaresma, Lucho, Cissoko, Lisandro, Bruno Alves e Raul Meireles. Desta feita, não só conseguiu que os portistas voltassem a formar um balneário quase sem fissuras (no discurso e não só...), como terá sido determinante nalguns importantes pormenores, como o da oportuna antecipação do jogo com o Nacional.
Mas o que continua a fazer a verdadeira diferença no futebol é a qualidade dos treinadores e dos jogadores. Com Villas-Boas, o FC Porto voltou a ter um treinador ambicioso nas acções e no discurso. E alguém que, sendo diferente de Mourinho, mantém com ele alguns pontos de contacto na perspicácia e na acutilância com que gere as intervenções mediáticas. Não tanto nas tentativas de desestabilização dos adversários, antes na forma como cria ciclos de motivação nos seus jogadores, o que tem sido fundamental numa liga em que foi preciso saber gerir o sucesso e a vantagem larga prematuramente ganha sobre o principal rival.
Claro que foi essencial a vitória sobre o Benfica na Supertaça, no início de Agosto. Criou dúvidas num Benfica ainda embriagado pelo sucesso e garantiu a estabilidade psicológica a uma equipa em formação, até porque logo a seguir vieram os três tropeções do campeão nas quatro primeiras jornadas. Decisiva foi ainda a capacidade de resposta portista na altura em que o futebol trepidante do Benfica somava vitórias atrás de vitórias, sinal de maturidade numa equipa que se mostrava capaz de vencer todas as batalhas, as pequenas e as grandes. Os tropeções com o Nacional na Taça da Liga e com o Benfica na Taça de Portugal acabaram por não deixar sequelas, porque houve capacidade de resposta imediata. Aí, foi fundamental Hulk, cujas manobras funcionavam como uma erupção nuclear.
Não foi preciso muito tempo para perceber que Villas-Boas, sem mudar o desenho táctico, transformara uma equipa que carburava basicamente em transições rápidas numa formação especialista em funcionar em organização e na reacção imediata às perdas de bola. Salvaguardando as diferenças, até ao nível da qualidade dos jogadores, o FC Porto transformou-se numa pequena réplica do Barcelona. Como os catalães, retira vantagem do caos que sabe instalar nos adversários. E a sua fiabilidade, consistência e equilíbrio são comprovados pelos números do seu desempenho tanto defensivo como ofensivo.
Essencial acabou por ser a contratação de Moutinho. O FC Porto funciona muito à custa do seu governo discreto. E a sua presença deu outra dimensão ao futebol de Belluschi. Este, por seu lado, é um bom exemplo da capacidade de Villas-Boas para exponenciar recursos. Outros exemplos são Sapunaru e Guarín, que, de patinho feio da equipa, se transformou, num estalar de dedos, num importante 12.º jogador, ou até mais do que isso - o que vem confirmar que Jesualdo tinha razão em acreditar nele.
Villas-Boas foi ainda competente (ao contrário de Jesus) na gestão do desgaste, executando trocas pontuais que tiveram ainda a vantagem de manter a competitividade interna. Mais do que isso, soube passar quase incólume nos 11 jogos da época em que Falcao ficou na enfermaria, mesmo que a colocação de Hulk em terrenos interiores resultasse numa solução muito discutível. Isso reflecte também o fracasso chamado Walter, que não há meio de perder o peso a mais.
A liga, como na altura escrevemos, ficou praticamente decidida logo na décima jornada, ainda em Novembro, quando o Benfica saiu do Dragão vergastado por cinco golos sem resposta e com dez pontos de atraso.
Caberá agora ao Benfica tentar inverter a situação, eliminando as suas actuais debilidades de forma a criar condições para regressar mais competitivo na próxima época. Deve fazê-lo em vez de arranjar desculpas fáceis, como a de tentar colar o inêxito aos desfavores da arbitragem. Há um ano atrás, toda a gente percebeu que o Benfica (como agora o FC Porto) foi melhor e mais forte, independentemente de algumas tristes histórias. A tese dos túneis e das arbitragens são pretextos fracos de dirigentes que nunca aceitam o mérito alheio, se escondem na hora da derrota e se põem em bicos de pé quando se abre o champanhe.
bprata@publico.pt
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