Antiga glória do F.C. Porto quer ajudar Villas-Boas a preparar a Supertaça. «O Hulk ou o Falcao podem imitar-me»
Há algum problema? Então é melhor chamá-lo. Placa levantada, arma secreta formatada no número 13. E lá ia Juary, o inesquecível Juary. Era quase sempre assim. Quando as primeiras opções de Artur Jorge não resolviam a questão, ospeedy Gonzalez brasileiro funcionava como SOS.
Naquela noite não foi diferente. 6 de Novembro de 1985, Taça dos Campeões Europeus, oitavos-de-final. O F.C. Porto chegava com uma desvantagem de 2-0 de Camp Nou, num jogo em que Juary viu um golo ser «mal anulado» e uma grande penalidade terá ficado por marcar. A favor dos dragões, claro.
Intervalo, nulo obstinado. Artur Jorge chama Juary e faz-lhe um pedido muito simples. «Leva velocidade ao jogo», recorda o antigo avançado ao Maisfutebol. «E lá fui eu. Marquei dois quase seguidos, estávamos a esmagar o grande Barça, até que o escocês Steve Archibald estragou a noite. Ainda marquei mais um perto do fim, mas não chegou.»
Juary, conversador contagiante, tem tudo na cabeça. «No dia seguinte o Artur Jorge chamou-me à salinha dele. Naquela voz colocada dele disse-me: se soubesse tinha-te metido de início. Eu fiquei sem saber o que dizer, mas respondi-lhe que ele tinha sido justo. Esse jogo ficou marcado em mim até hoje. Arrasei aquela defesa, eles olhavam e eu já lá não estava.»
«Hulk ou Falcao podem imitar o meu feito»
A 26 de Agosto o F.C. Porto reencontra o Barcelona. O palco de glamour será o Estádio Louis II no Mónaco. Juary está à espera «de um convite do Pinto da Costa» para assistir ao duelo e, «quem sabe», ir ao balneário.
«Se o André Villas-Boas quiser eu explico como se faz três golos ao Barcelona», dispara Juary, sempre imprevisível, mesmo com as palavras. «Vão estar frente a frente as duas melhores equipas da actualidade. Mas não duvido que o Hulk ou o Falcao, por exemplo, podem imitar o meu hat-trick. São avançados de enorme categoria.»
Juary tem 52 anos, é treinador em Itália e levou o Sestri Levante ao quarto lugar na liga regional da Ligúria (no norte). Não perde um jogo do F.C. Porto e é comentador numa televisão italiana. «Tenho uma boa vida em Itália, possuo uma academia de futebol em Avellino e estou feliz. Mas tenho um sonho enorme. Sabe qual é?» Não. «É voltar a fazer parte da família azul e branca.»
«Fui convidado para isso há uns anos, até para abrir horizontes ao clube no Brasil. Recusei. Estava embrenhado na minha carreira de treinador e achei que o timing era mau. Agora aceitaria.»
«Villas-Boas ficou mais envergonhado do que eu»
A recente deslocação do F.C. Porto a Viena, no decurso da Liga Europa, reuniu os campeões de 1987. Juary conheceu André Villas-Boas e ficou rendido. «Ele viu-me ao lado do Madjer e disse que dois! Ficou mais envergonhado do que eu», indica a antiga glória. «Ele é o melhor treinador do mundo da nova geração».
André Villas-Boas já sabe. Se precisar de uma ajuda-extra na palestra da Supertaça Europeia, Juary está disponível.
Juary: «A psicologia do Artur Jorge fez-me tocar o céu»
A final de Viena revisitada por um dos seus heróis. A lesão escondida, o discurso ao intervalo, as saudades dos irmãos de armas
1,68 metros de gente a pegar numa alma sem fim. Jogada sublime de Rabah Madjer, olhos trocados a um alemão caído em desgraça, o centro para a finalização surreal de Juary. Consagração máxima de uma grande equipa de futebol. Nunca é de mais recordar Viena, 1987.
«Eu nem devia ter jogado», diz o baixinho brasileiro aoMaisfutebol. «Estava lesionado no tornozelo direito, sem condições nenhumas. Mas a psicologia única do Artur Jorge fez-me tocar o céu. Ele pediu ao Rodolfo Moura para me deixar em condições de jogar. Não precisa de ser muito tempo, em 30 minutos o Juary decide. E pronto, perante isto, eu tinha mesmo de entrar.»
Juary começou a aquecer perto do intervalo. Foi ao balneário e escutou o discurso do rei Artur. «Foi simples, muito simples. O campeonato de Portugal podemos ganhar quase sempre. Fazer história tem de ser hoje. O que preferem vocês? Vão lá para dentro e joguem à Porto. Disse-nos isso, deixou-nos o peito a ferver. Só queríamos ir para cima do Bayern.»
Artur Jorge, de resto, merece as mais sinceras loas de Juary. «Tínhamos uma relação de pai e filho. Respeitava-o muito. Como treinador e como homem. Era uma pessoa educadíssima, inteligente e culta. Para ele todos os jogadores eram iguais», conta Juary, voz embargada pela saudade.
«O maior mérito dele era a comunicação, talvez. Conseguia fazer com que o plantel percebesse a relevância de cada jogo. Nunca o questionei por ser suplente ou titular, nunca. Aceitava as escolhas dele e aproveitava ao máximo o que ele me dava.»
«Pensava que o Futre se ia perder»
A entrevista percorre nomes sagrados na nação azul e branca. Fala-se da «genialidade» de Rabah Madjer, do «menino» Futre, dos «senhores» Gomes e Eurico, e ainda de Lima Pereira, Jaime Pacheco, João Pinto, Zé Beto, Mlynarczyck e Celso.
«O Pinto da Costa não escolhia nenhum jogador que não fosse um grande homem. Estudava-nos a todos. Construiu a equipa devagar, minuciosamente, até chegar ao título europeu. Sinto uma grande nostalgia porque todos eram meus irmãos. Se eu estava mal havia sempre alguém disposto a ajudar.»
Juary sente falta, por exemplo, «dos almoços de sexta-feira». «Eram fantásticos, mas para participar tínhamos de conquistar a confiança dos jogadores mais influentes. Eu consegui. Dava-me bem com toda a gente, mas tenho de destacar os exemplos do Eurico, do Gomes e do Lima Pereira. Tiveram lesões gravíssimas e nunca deixaram de estar connosco.»
Paulo Futre é outra «criatura especial». «Era o nosso menino. Vi-o crescer, vi aquele talento extraordinário e vi também algumas asneiras. Às vezes pensava que ele se ia perder. Enfim, joguei com o Pelé, defrontei o Maradona e o Van Basten, mas o que mais me orgulha é ter jogado naquele F.C. Porto», conclui o ex-atacante.
Juary: um disco, a terra a tremer e um tiro a mudar a vida
Um avançado viciado na alegria e no golo. Recordações de uma carreira cheia de sucessos e de uma existência de sustos
A vida de Juary mudou no dia em que ouviu um tiro. Ou, pelo menos, esse instante mudou a forma como Juary olha para a vida. «Estava inserido num projecto de futebol comunitário. Visitava as favelas de São Paulo três vezes por semana», narra ao Maisfutebol a velha glória do F.C. Porto.
«Estava a treinar uma equipa de miúdos e ouvimos um estrondo. Corremos para fora do campo e vimos um rapaz de 13 anos com uma pistola na mão. Tinha acabado de matar uma pessoa. A vida lá é dura, é barra pesada. Nem todos são criminosos, mas o tráfico de droga impõe um clima assustador.»
Nesta fase da conversa, a animação de Juary esvai-se. Em Itália, a arma secreta de Artur Jorge ouviu um estrondo ainda mais dilacerante. «Foi a 23 de Novembro de 1980. Jogava no Avellino e tínhamos ganho ao Ascoli. Fui para casa descansar e acordei com um barulho. Parecia uma bomba, mas era um tremor de terra. Morreram 3500 pessoas», lembra Juary.
«Quando as coisas acalmaram meti-me no carro com o Stefano Tacconi, que depois foi guarda-redes da Juventus e da selecção. Andámos à procura dos nossos colegas, a ver se todos estavam bem. Foi horrível.»
Juary esteve de 1982 a 1985 em Itália, fez golos na Cremonese, no Inter de Milão, no Avellino, no Ascoli e gravou um disco. Sim, Juary foi cantor. «Eu desafinava mais do que uma mula. Mas estava lesionado e quis ajudar as vítimas do terremoto. Por isso aceitei o desafio. O álbum chamou-se Sara Cosi [assim será]. Devo ter vendido aí umas 30 cópias!»
Para Juary o futebol era alegria e só fazia sentido com golos. Criou uma forma original de celebrar e dava sempre uma volta à bandeirola de canto depois de cada remate vitorioso. «Só não festejei assim em Viena. Fiquei tão siderado que corri e ajoelhei-me. Tudo começou no Santos, num jogo que me correu bem. Depois mantive o ritual.»
in "maisfutebol.iol.pt"
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