Goste-se ou não, a Juventus parece a RFA dos bons velhos tempos: passam 89 minutos a sofrer e, de repente, um golo, ou mesmo dois, para acabar com as dúvidas. Se o futebol italiano é cínico, a Juve representa esse papel na perfeição. É assim, faz parte do seu ADN. Desde os tempos da fundação (1897), em que se equipam de cor-de-rosa, até hoje, já de preto e branco, a imitar a equipa inglesa do Notts County desde 1905.
Equipa italiana com mais títulos nacionais (28 scudetti – 27 da Serie A e um da B –, nove Taças de Itália e quatro Supertaças italianas), a Juventus está empatada com o Benfica no rótulo de vice-campeã europeia, com cinco finais perdidas da Taça dos Campeões mais uma da Taça UEFA. Pelo meio, é das poucas equipas a juntar os três troféus possíveis: Taça dos Campeões (bis), Taça das Taças (vs. FC Porto, em 1984) e Taça UEFA (hat-trick).
Numa dessas três vezes, em 92/93, um português assume-se como figura da equipa de Turim. É Rui Barros, o número oito. Em duas épocas, o rato atómico assina 19 golos em 95 jogos. A sua vítima preferida é o Milan. Além de marcar dois golos num célebre 3-0 em Março de 1990, faz o passe para o 1-0 de Galia, que certifica a vitória em pleno Giuseppe Meazza e a consequente conquista da Taça de Itália nesse mesmo ano.
Ora bem, serve o pretexto para falar sobre e com Rui Barros a propósito do Milan-Juventus de hoje à noite. Os dois primeiros classificados do campeonato encontram-se em Milão, com a curiosidade de a Juventus ser o único clube europeu invencível em 2011/12, com 16 vitórias e dez empates entre Serie A e Taça de Itália. A última derrota recua a 21 de Agosto, num particular precisamente com o Milan (1-2). Antes, já o Sporting de Yannick (outro 2-1, este no Canadá e a 23 de Julho) havia lançado dúvidas sobre a equipa de Antonio Conte. Meio ano depois, e aí está a Juventus a respirar saúde. Como aquela Juve dos anos 90. A de Rui Barros. Vamos ligar-lhe ao intervalo do Nápoles-Chelsea e ouvi-lo.
Boa noite, Rui Barros. Sou Rui Miguel Tovar, do jornal i. Posso roubar-lhe uns minutos ou está a ver o jogo em Nápoles?
Não, esteja à vontade.
Por acaso, quero falar consigo sobre a sua passagem por Itália, a propósito do Milan-Juventus deste sábado. Deduzo que é daqueles jogos que paravam o país.
A partir do momento em que terminavam os jogos do domingo anterior, não se falava de outra coisa a não ser do Milan-Juventus do domingo seguinte. Era a semana toda a ouvir programas de televisão e rádio e mais páginas e páginas de jornais e revistas sobre o clássico. Eram sempre grandes jogos, com ligeiro ascendente do Milan, que era um pouco mais forte. Eram os tempos do Arrigo Sacchi com Van Basten, Gullit, Rijkaard, Baresi. Era uma equipa fabulosa, mas ainda assim conseguimos contrariá-los uma vez ou outra.
Então?
Lembro-me de uma final da Taça de Itália em 1990. Empatámos 0-0 em casa e íamos discutir o troféu a Milão, frente a uma equipa campeã europeia no ano anterior e que iria revalidar o título um mês depois, com o Benfica. Ganhámos 1-0 [25 de Abril] e foi o culminar de um ano fantástico, porque antes...
Nessa época ainda?
Sim, pouco antes [11 de Março], ganhámos 3-0 ao Milan, com dois golos meus e um do Schillaci. Foi um jogo para o campeonato e essa derrota do Milan, então líder com dois pontos de avanço sobre o Nápoles do Maradona, permitiu reavivar a esperança do Nápoles, que viria a sagrar-se campeão na última jornada.
Dois golos ao Milan, hã?! É uma fartura.
Diziam que eu era a besta negra do Milan, porque era muito rápido e, de vez em quando, lá me escapava à defesa em linha deles.
Não era fácil, com o Baresi...
Era incrível o que eles faziam em campo. O Baresi era um treinador dentro do campo. Bastava um tipo de assobio para que eles fechassem ao meio ou se espalhassem pelas laterais ou subissem. Era incrível o entendimento entre todos aqueles defesas, como Tassotti, Costacurta, Maldini, Filippo Galli.
Mas o Milan era uma equipa física?
Eram maduros, experientes e responsáveis. Sabiam perfeitamente o que faziam em campo. Eram agressivos, não no sentido de dar porrada, mas uma agressividade boa, na conquista da bola e do pressing.
E qual era o seu marcador directo?
Eu jogava ali mais para a direita e apanhava o Maldini, um excelente jogador, que jogou até aos 41 anos, 20 dos quais a um nível elevadíssimo. Éramos da mesma idade e dávamo-nos bem fora do campo.
E dentro?
Às vezes calhava passar por ele. Outras era obrigado a procurar outros caminhos.
Chegaram a trocar de camisolas?
Sim, sim. Tenho dele, do Baresi, do Maradona.
Do Maradona? Mas como é que a conseguiu?
A procura era muita, de facto [risos tímidos], mas havia uma boa relação entre nós. Para começar, éramos quase da mesma altura [mais risos, mais tímidos ainda] e depois ele elogiou-me algumas vezes nuns programas de televisão. Havia respeito mútuo. Mas foi em Nápoles que vivi um dos momentos mais tristes com a camisola da Juventus.
Então?
Na primeira mão dos quartos-de-final da Taça UEFA, tínhamos ganho 2-0 em casa. Bastava aguentar essa vantagem em Nápoles, mas isso foi impossível. Fomos lá perder 3-0, com golo de Maradona de livre directo e tudo, após prolongamento. Na altura não achei piada nenhuma, mas aquele ambiente foi do outro mundo. Chegámos a Nápoles e foi arrepiante. Do aeroporto ao hotel, centenas de adeptos com aquelas motorizadas, lambretas, a perseguir o autocarro da Juventus durante a viagem toda, com pontapés em tudo o que era sítio, gestos e palavras e mais palavras. Um ambiente infernal. No estádio a mesma coisa. Oitenta mil pessoas e caímos por 3-0. O Nápoles ganhou a Taça UEFA dessa época [88/89] e nós levantámo-la no ano seguinte.
Fim à travessia do deserto, portanto.
Sim, a Juventus do Platini, Boniek e Laudrup, treinada pelo Trapattoni, tinha ganho tudo o que havia para ganhar. Em Itália e na Europa. Então a equipa que veio a seguir foi construída a pouco e pouco. Só podia haver dois jogadores estrangeiros em campo e um terceiro no banco, que tinha obrigatoriamente de substituir um dos estrangeiros.
Nessa Juventus, quem eram eles? Além do Rui Barros, claro.
O clã russo: Aleinikov e Zavarov.
Dava-se bem com eles?
O Aleinikov já tinha jogado no Lecce e chegou à Juventus com outra disposição, porque já falava italiano. O Zavarov já passou um período mais complicado, porque não se entendeu com a língua italiana e saiu directamente da URSS para a Itália. Era complicado. Eles, os dois, andavam sempre acompanhados por um intérprete e íamos almoçar e jantar muitas vezes juntos.
Além deles, os italianos.
O guarda-redes era o Tacconi. Um brincalhão e a grande figura dessa Juventus, tal como o Cabrini, campeão do mundo pela Itália em 1982. O Tacconi protegia muito os jogadores do clube, como o avançado Altobelli, outro campeão do mundo.
Andavam sempre juntos?
Sim, convivíamos regularmente, com almoçaradas e jantaradas, entre nós e respectivas famílias.
Como era a sua vida em Turim?
Era complicado passear tranquilamente. Eu às vezes pensava como era possível um Maradona, um Van Basten ou um Gullit saírem à rua. Se fosse a um restaurante, eu, que jogava na Juventus mas era pouco conhecido, tinha de falar com toda a gente. Faziam fila para falar comigo. Até pessoas que não estavam no restaurante mas ouviam falar lá fora e entravam. Pessoas de todas as idades. Crianças de seis anos e senhores de 60. Queriam conversar. Nem só adeptos da Juventus, mas também de outros clubes. Todos tinham curiosidade.
Curioso esse mundo. Como é foi parar lá?
Na altura só pensava em sobressair no FC Porto, pelo que o salto para a Juventus foi uma total surpresa para mim. Da noite para o dia, estava num grande de Itália. Mas como?!
Isso pergunto eu...
Há vários factores. Uma vez, na qualificação para os Jogos Olímpicos Seul-88, jogámos com a Itália. Empatámos 0-0 em Lisboa e fui eleito o melhor em campo pela imprensa. O seleccionador da Itália era o Dino Zoff, o treinador que encontrei na Juventus. Depois há também aquele jogo em Amesterdão, com o Ajaz do Cruijff, para a primeira mão da Supertaça Europeia. Ganhámos 1-0, com um golo meu, e a imprensa internacional consagrou-me. Foi assim, do FC Porto para a Juventus.
Mas como, concretamente?
Olhe, às dez da noite não sabia de nada e às sete da manhã do dia seguinte já estava a caminho de Turim.
Bolas, foi mesmo da noite para o dia...
Telefonaram-me para casa a informar do interesse de um clube, fui à sede falar com o presidente, Pinto da Costa, estivemos na conversa duas ou três horas e depois meti-me num avião para ser apresentado pela Juventus nessa manhã.
Nem se despediu dos colegas do FC Porto?
Despedi-me, sim. Claro. Quando fui buscar o meu saco e as chuteiras, eles perguntaram-me onde é que eu ia e gozaram comigo quando lhes disse que ia para a Juventus. Julgavam que estava a brincar.
E como se sentiu nessa apresentação em Turim?
Assustado. Nervoso. Na viagem do Porto para Itália passaram-me imensas coisas pela cabeça. Em Turim mais assustado fiquei. A sede da Juventus estava entupida de gente. Todos queriam ver-me, tocar em mim. Impressionante.
Com Zoff ao seu lado?
Sim, um senhor do futebol e do saber estar. Um verdadeiro gentleman.
Quando saiu da Juventus, o Rui Barros também arrepiou caminho.
O presidente Boniperti, que me foi buscar ao FC Porto, ia sair do clube com o fim do seu mandato e ia entrar um novo dirigente [Giovanni Agnelli]. Com ele sairia também o Zoff. E ele disse- -me ‘tu não assines por ninguém, porque vais comigo para a Lazio.’ Acontece que a Juventus não me deixava jogar em Itália. O Zoff ainda falou com os dirigentes da Juventus para tentar desbloquear a coisa, mas nada feito. Daí que tenha ido para o Monaco.
Como correu essa transferência?
Foi uma mudança de hábitos. Na Juventus, no final de cada treino, havia sempre 20/25 jornalistas à nossa espera. No Monaco, lá passava um jornalista no nosso centro de estágio de mês a mês. O nível de pressão era diferente, bem mais tranquilo. Claro que o Monaco também queria ganhar, mas noutro registo. Até a vida era diferente. No Monaco, o ambiente era menos impessoal e mais individual. Cada um por si. Nessa altura entendi-me às mil maravilhas com o Klinsmann, porque o conhecia do Inter. Era um portento. Alemão, pronto. Não era fabuloso tecnicamente, mas a cultura do trabalho estava lá e era imbatível nesse particular.
No Monaco é treinado por Wenger.
Um treinador sensacional, com uma sensibilidade táctica notável. Aliás, isso foi em 1990 e ele continua aí, no Nápoles [ééééééé, Rui Barros está a ver o mesmo jogo que nós pela televisão: Nápoles-Chelsea]. Perdão, no Arsenal. Agora não está muito bem, mas já foi campeão invicto em Inglaterra. No Mónaco fizemos sempre grandes campanhas no campeonato e não só.
Ai sim?
Pois, ganhámos a Taça de França-91, ao Marselha, no Parque dos Príncipes, e ainda fomos à final da Taça das Taças-92, com o Werder Bremen.
Aquela perdida na Luz?
Essa mesmo. O estádio estava tão vazio... Aquilo parecia um jogo-treino, e não uma final. O Monaco não tem muitos adeptos, o Werder Bremen era um clube também novo naquelas andanças e levou pouca gente. Depois a imponência e a grandeza do Estádio da Luz, com 120 mil lugares. Só podia dar aquele ambiente.
E perderam?
Dois-zero com o Werder Bremen, treinado pelo Otto Rehhagel, que depois ganhou o Euro-2004 na Luz, pela Grécia. Já aí era um treinador metódico e vitorioso.
Além dessa final, retém outros momentos do Monaco na Taça das Taças?
Sim, dois assim de cabeça. Marquei o 1-0 à Roma que nos apurou para as meias-finais e depois eu e o Weah marcámos Feyenoord em Roterdão [2-2]. O meu golo foi de cabeça.
Xiiii, imagino as bocas.
Sim [risos]. Toda a gente, como Petit, Thuram, se metia comigo a perguntar como era possível um baixote marcar de cabeça, mas só é preciso estar lá na altura certa.
Era uma grande equipa, então.
O Monaco é um clube especial. Os jogadores conhecem os nomes dos adeptos e os adeptos desconhecem os dos jogadores [risos]. A própria vida do clube é engraçada. Como o estádio, por exemplo. Aquilo leva 20 mil, mas a média dos adeptos era só de 4 mil por época. Aquilo só mexia com Marselha, Paris SG e Nice, por se tratar de um vizinho.
Um dos poucos espectadores era o príncipe Alberto?
Sim, claro. Grande entusiasta. Era um atleta, não sei se sabe. Muitas vezes ia lá treinar connosco, sobretudo em semanas em que não havia jogo no fim-de- -semana por jogos de selecções. Mas a melhor recordação dele é a vitória na Taça de França, com o Marselha. Imagine só o Parque dos Príncipes cheio: 38 mil adeptos do Marselha e 2 mil do Monaco. Ganhámos 1-0 com um golo de Passi aos 90’. Estamos a falar do Marselha de Mozer, Boli, Waddle, Papin, Abedi Pelé. A festa do título foi patrocinada pelo príncipe, num restaurante só para nós, e depois numa discoteca. Que noite! Hilariante!
in "ionline.pt"
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