O mundo de Jackson: Tino Asprilla e a panca pela NBA
Reportagem-Maisfutebol: a provocação de um grande ponta-de-lança e as noites em que o colombiano era Michael Jordan
Faustino Asprilla era o melhor avançado colombiano de sempre. O verbo vem propositadamente no pretérito imperfeito. O presente
oferece-nos Radamel Falcao e promete-nos Jackson Martinez. Estará Asprilla de acordo connosco?
«Para ser melhor
do que eu, o Jackson vai ter de marcar mais uns golinhos», diz ao Maisfutebol o histórico Tino, glória do Parma
e do Newcastle nos anos 90. Os 57 jogos e 20 golos pela seleção da Colômbia dão-lhe toda a razão.
Asprilla
prefere,
de resto, lançar um desafio a Jackson. «Ele
precisa de consolidar o lugar na nossa seleção. Pode fazer história ao
lado do
Falcao e do James, mas para isso é obrigatório a
qualificação para o Mundial do Brasil. Eu estive em dois Mundiais [1994
e
1998]».
Aos
42 anos, Faustino Asprilla continua
um provocador. Gargalhadas, questões ao
jornalista e mais um repto lançado a Jackson. «Vi o golo de calcanhar
que marcou ao
Sporting. Um golo desses tem de ser festejado
com um mortal, como eu fazia. Fico à espera!» E ri-se.
Antes da
despedida,
pedimos um comentário a este grande (ex)
ponta-de-lança sobre Falcao, Jackson e as possíveis semelhanças entre
ambos. Asprilla
reage por instinto.
«São muito
diferentes, para mim. Só vejo semelhanças na forma como cabeceiam. O
Falcao é mais
intuitivo, um tigre, um felino. O Jackson é um
monstro físico, um avançado poderoso. A Colômbia tem a sorte de poder
contar
com os dois».
Vasos partidos por culpa de Michael Jordan
O grande ídolo de Jackson Martinez é Michael
Jordan. Durante anos a fio, o colombiano partilhou a atenção pelo futebol e o basquetebol. Sonhava ser Air Jordan e
voar para os cestos. Partiu vasos e vidros, até que o pai lhe meteu juízo na cabeça.
«Era
bom nos dois desportos,
mas na Colômbia ninguém melhora a vida se for
jogador de basquetebol. O Jackson passava horas a ver jogos do Michael
Jordan.
Um dia puxei-o e disse-lhe: rapaz, se podes ser um grande futebolista, não sejas um grande basquetebolista».
O
conselho paterno foi aceite. Se assim não fosse,
é provável que Jackson andasse por outras latitudes. Os adeptos do F.C.
Porto
têm muito a agradecer ao senhor Orlando
Martinez.
O mundo de Jackson: a fome e os atrasos envergonhados
Reportagem-Maisfutebol: a chegada a Medellín, os berros de Pedro Sarmiento e a oferta louca de Fernando Jimenez
2004, o primeiro ano na carreira profissional de Jackson Martinez. A mudança de Quibdó para Medellín alivia as débeis finanças
familiares e dão um novo mundo ao pequeno mundo do ponta-de-lança.
É
descoberto e garimpado por Fernando Gimenez
num torneio da Universidade de Antioquia. Aceita
o convite e assina pelo Independiente. Tem 19 anos e a aprovação
paterna.
As poupanças dão para a viagem e pouco mais.
É aí que conhece Pedro Sarmiento.
O seu primeiro treinador no escalão sénior emociona-se em conversa com o Maisfutebol.
«Fui dos poucos a acreditar naquele
palito», recorda. «No primeiro jogo foi para o
banco e entrou uns minutos. Foi assobiado e insultado pelos hinchas.
Não o entendiam. Nem a ele, nem a mim».
As
coisas mudaram, porém. «O Jackson superou-se. Melhorou muito, tornou-se
um grande profissional. Eu sentia que ele tinha
algo de especial e não desisti da aposta», conta o atual treinador do
Envigado.
«Como
era maltratado nos jogos em casa, esperei para
voltá-lo a colocar em campo. Fomos jogar a Bucaramanga e pu-lo a
titular. Partiu
tudo, jogou de raiva. Nunca mais o
desrespeitaram».
«Andava duas horas para um lado e duas para outro»
Os
maiores problemas eram, no entanto, de
componente física. Esqueçam o Jackson musculado e potente que conhecem.
Por aqueles
dias, o rapaz era pele e osso. Pedro Sarmiento
fez, de resto, uma descoberta preocupante.
«Não se alimentava
bem,
passava fome em alguns dias. Já era profissional
e vivia assim, sem condições. Tive de ser eu a oferecer-lhe a roupa
para
vestir e o equipamento para jogar: calções,
meias, caneleiras e chuteiras. Era pobre, paupérrimo».
A relação
extravasava
a simples obrigação de treinador para atleta.
Pedro Sarmiento foi pai, amigo, confidente. Mesmo que Jackson não
falasse. «Era
um muro de silêncio e vergonha. A dada altura
passou a chegar sempre tarde aos treinos. Gritava com ele e não me
respondia».
Jackson não se justificava nem pedia desculpa. Tudo por timidez. «Vim a saber, por outros, que o dinheiro lhe acabara
e ele passou a vir a pé para os treinos. Caminha duas horas para um lado e duas para o outro».
«Pressionei-o
e ele
lá me admitiu que não tinha um cêntimo no bolso.
A família estava em dificuldades e por um período não lhe enviou plata.
Pu-lo em minha casa e passou a ser mais um do meu agregado», narra Don Pedro Sarmiento.
Dobrar o salário
antes da estreia
Em 2004, o salário
de Jackson Martinez no Independiente rondava os 400 mil pesos (172
euros).
Não dava para nada. Quase nada. Foi no
balneário, minutos antes do jogo de estreia, que ficou apalavrado um
novo contrato.
É Fernando Jimenez, diretor desportivo do Independiente, quem o conta ao Maisfutebol.
«Estava
a
falar com o técnico e percebemos que o Jackson
não estava bem. Parecia triste. Abeirei-me dele, um minuto antes de
subirmos
para o relvado e dei-lhe a novidade: amanhã passas a ganhar 800 mil pesos. Sorriu como nunca sorrira antes».
O
dirigente recorda-se das críticas iniciais, mas
também de deixar os treinadores boquiabertos. «Ao quinto dia de treinos
já
estavam conquistados: onde o achaste? É craque!. É craque e um enorme profissional. O F.C. Porto acertou em cheio.»
O mundo de Jackson: «cha cha cha», em nome do pai
Reportagem-Maisfutebol: o orgulho paternal de Orlando Martinez, as histórias de infância, o passo para o Coopebombas
Estranhos dias vive Jackson Martinez. Tudo é sucesso, tudo é felicidade, tudo é perfeição. Estranhos dias, sim. Estranhos
pela radical oposição à humildade, quase aviltante, dos primeiros anos em Quibdó.
Oriundo
de uma família modesta,
sujeita a privações assustadoras, Jackson
alimentava-se de sonhos e ilusão. Como qualquer outro menino, afinal.
Fugia de casa
e corria para a terra enlameada do Bairro
Enciso. Jogava com bolas de papel amassadas e sempre descalço.
Uma vez
por ano, o mítico Francisco Maturana organizava um torneio na zona: Los Maturanitas.
Jackson não falhava um. É provável
que fosse o mais magro e o mais sujo. Nada que o
atormentasse. A idade propiciava o dom da imortalidade e a eloquência
do
heroísmo.
Ninguém o tomava por Cha cha cha
ainda. A alcunha, certeira, surgiria anos mais
tarde, já depois de jogar no Deportivo Enciso e no Coopebombas. Por
culpa do
pai, Orlando, um ex-futebolista.
É o progenitor, na primeira pessoa, a explicar ao Maisfutebol a origem do
cognome.
«Eu jogava no Cóndor de Bogotá
(Primeira B) e até tive convites do Santa Fé. Estava na moda um mambo
chamado
Cha Cha Cha e eu celebrava os meus golos a
bailar esse ritmo. Quando o Jackson começou a marcar, os adeptos
lembravam que
ele era o filho do Orlando Cha Cha Cha. Ficou
até hoje.»
Ficou a alcunha e ficaram os golos. Don
Orlando
fala «orgulhoso» desde Quibdó, noroeste
colombiano. «A família reúne-se sempre que o Jackson joga. No final
falámos sempre.
Depois do golo marcado ao Sporting ele estava
doido. Estávamos os dois, aliás».
Pontapear bonecos para ninguém
dormir
Da criança «fraquinha e submissa» que andava lá por casa, já pouco resta. Orlando Martinez está estupefacto
com a transformação física do filho.
«Tem
tudo a ver com superação. Lembro-me das noites em que eu queria dormir
e ele andava a pontapear bonecos. A casa pequena
e ouvia tudo. Éramos pobres e não havia uma bola boa», recorda o pai do
goleador
azul e branco.
Não havia dinheiro mas,
garante Orlando Martinez, havia educação. «Foi o compromisso que fiz com
ele: não podia abandonar a escola. Completou o
secundário e só depois se mudou para Medellín. A vida dele mudou
radicalmente».
No Coopebombas a sonhar com a Champions
Jackson
chegaria à grande metrópole em 2004. Não antes de
jogar no Deportivo Coopebombas, um clube
pertencente a uma cooperativa de táxis. Foi aí que conheceu o amigo e
representante
Gustavo Gallo. Foi aí também que passou a sonhar
com a Liga dos Campeões.
«Apareceu numa captação. Eu fundei o
clube
e observava os treinos. Vi aquele moreninho a
fintar toda a gente e pensei que estava a ver um milagre», conta o
antigo treinador
de Jackson ao nosso jornal.
«Uns meses depois prometi-lhe que um dia o veria a jogar a Champions.
Aí está
ele. Nessa altura era mais nervoso em campo.
Levava porrada, reagia e era expulso. Está muito mais sereno».
Entre
os colegas, Jackson passou a ser conhecido por El Mudo.
«Tinha
15 anos e não dizia uma palavra. Só se fosse
obrigado. Acatava tudo, percebi que ia ser um
grande profissional. Não me enganei. Ficámos grandes amigos e sou eu que
lhe
tomo conta de casa aqui na Colômbia».
in "maisfutebol.iol.pt"
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