Uma viagem aos anos 80
através do egípcio do Beira-Mar, entre guarda- -chuvas em Aveiro, bacalhau na
Figueira da Foz e alguns golos emblemáticos, como aquele à Holanda no
Mundial-90 ou o outro ao Baía na final da Taça
O plano está traçado e não é possível errar. O plano é entrevistar
Jorge Costa, um dos dois seleccionadores portugueses na Taça das Nações
Africanas - o outro é Rui Águas (Cabo Verde). A ligação daqui para o Gabão não
está fácil. Apercebemo-nos depois de que falta um número. Resgatado o
algarismo, tentamos uma e outra vez. Agora já com Jorge Costa na
Guiné-Equatorial, onde amanhã se inicia a 30.a edição da prova. Mas não há
jeito, do outro lado não nos chega a voz de Jorge Costa, capitão do FC Porto na
hora de levantar o último título internacional (Taça Intercontinental-2004).
Posto isto, temos de abrir o leque de opções e atacar o plano B.
Qual bê qual carapuça, o nosso homem começa pela letra A. Chama-se Abdel Ghany.
Ou melhor, Magdi Abdel Ghany Sayed Ahmed. O seu português é quase perfeito, o
seu timbre entra-nos pelo ouvido com tal clareza que até parece que estamos a
falar cara a cara, apenas separados por um sofá. Quer dizer, nós estamos
sentados num sofá. Ele é que não sabemos.
Para quem não sabe, Abdel Ghany é uma espécie de herói. Egípcio do
Cairo, aterra em Aveiro aos 29 anos de idade, via Al Ahly, o clube da sua vida
desde 1965 (sim, ele entra nas escolinhas aos seis) até 1988. É ali que se faz
homem. Que se faz médio ofensivo com uma qualidade ímpar. Os números não o
desmentem: 57 golos em 386 jogos, sem esquecer a chamada para a selecção
egípcia, onde participa nos Jogos Olímpicos-84, em Los Angeles. Dois
anos depois é campeão africano. Em casa, no Egipto, no Cairo. É aqui que
queremos chegar: Abdel Ghany tem uma forte ligação com a Taça das Nações
Africanas. Nada melhor, portanto, que incomodá-lo com 11 perguntas. A ocasião
está a pedir, não está? (Só para esclarecer, esta pergunta não faz parte das
11).
1. Boa tarde, Abdel Ghany. O seu nome faz parte da história de
Portugal. Tem noção disso?
Boa tarde, boa tarde [com uma alegria contagiante]. Sei que sou
muito acarinhado aí e sinto saudades, imensas saudades, de vos visitar. Deixei
muitos amigos e quero revê-los. Daqui a uns meses, quem sabe? A verdade é que
os quatro anos em Aveiro foram do melhor que vivi em toda a vida. E não falo só
do plano profissional. Tinha uma bela vida aí, tranquila e cheia de prazeres.
2. Então fale lá de um desses prazeres...
Um só? Não consigo. É pouco, pouquíssimo. Então eu estava em
Aveiro, junto ao mar. Havia toda uma costa para aproveitar. Tanto para cima
como para baixo. É uma fila de pratos deliciosos, de refeições animadas. O
arroz de marisco, o bacalhau na Figueira, os camarões grelhados, o tamboril, o
peixe-espada... Pelo meio treinava com os meus amigos do Beira-Mar. E depois
jogava contra os mais grandes.
Um só? Não consigo. Olhe, só lhe digo que chegámos à final da Taça
de Portugal em 1991 e eu marquei um golo ao Vítor Baía. Ao Vítor Baía!
[Obrigado por me furar os tímpanos.] Quer dizer, ele era um guarda--redes
extraordinário, daqueles difíceis de bater. Porque sim, porque era completo e
porque, é justo reconhecê-lo, tinha uma defesa seguríssima à sua frente. Mesmo
assim, nós fomos lá à frente e marcámos. E fui eu. Que alegria imensa marcar ao
Porto, numa final da Taça e num estádio tão bonito como o Jamor! Aquele dia
nunca esquecerei.
4. Desculpe interrompê-lo mas o Beira-Mar perdeu essa final, não
perdeu?
Sim, é verdade, perdemos 3-1, mas só no prolongamento. Demos luta
e fomos grandes durante o tempo todo. Eles foram mais fortes, simplesmente
isso. Mas o Jamor será sempre uma recordação bem-vinda. Um golo ao Vítor Baía,
uffff. Mal o marquei fui a correr para a bancadas dos adeptos do Beira-Mar, que
já lá estavam desde o raiar do dia. Foi um dia intenso, de emoções mistas.
Perdemos, sim, mas virámos heróis. De Aveiro e também de Portugal. Afinal não é
todos os dias que se chega a uma final da Taça.
5. Pois não. O Beira-Mar só lá voltou uma vez, em 1999. Lembra-se?
Se me lembro? Amigo, voei de propósito daqui para Portugal e vi o
1-0 do Ricardo Sousa ao Campomaiorense, outra vez no Jamor. Eu sabia que aquele
estádio me iria dar uma boa notícia. Só chegou ligeiramente mais tarde do que
sonhava, mas chegou. E foi cá uma festa... De arromba! Jantei com os campeões e
senti-me parte deles. Percebi a sua alegria e juntei-me a eles. E olhe que já
ganhei uma CAN (Taça das Nações Africanas).
6. Ainda bem que fala, porque já me tinha esquecido totalmente
disso. Ganhou quando?
Em 1986, no ano do Mundial do México. Até te posso dizer que
ganhámos a Marrocos [adversário que elimina Portugal na fase de grupos, por
3-1] no caminho para a glória. Foi outra epopeia grandiosa. Vivida com outra
intensidade, claro. Afinal jogávamos em casa e o conforto do lar é outro se
fortemente empurrados pelo público. Cada jogo era cá uma adrenalina. As
bancadas cheias, cheias, cheias, como nunca vi. Perdemos o primeiro jogo
[Senegal, 1-0] e soubemos dar a volta. Somos bravos, fortes. Os mais
competentes do nosso continente. E atenção, havia uma série de selecções
notáveis, como os Camarões, do Roger Milla, com quem fomos à final.
7. E como correu essa final?
Zero-zero no final dos 90 minutos. E zero-zero aos 120. Nos penáltis
ganhámos 6-5. Eu marquei o meu.
8. Como de costume. Não é o Abdel Ghany quem marca aquele à
Holanda em 1990?
Woooow, é isso mesmo. Outro dia inesquecível. Nesse caso até foi à
noite [mete uma gargalhada pelo meio como bónus]. Isso foi em Palermo, na fase
de grupos do Mundial-90. Quando nos calhou a Holanda, campeã europeia, Irlanda,
a surpresa do Euro-88 e a Inglaterra, todos nos vaticinaram um Mundial de má
memória. E não é que demos a volta com talento e até golos?! Esse em particular
deu-me gozo. Num Mundial?! Demais. Eu concentrei-me muito, muito, muito, o Van
Breukelen esticou--se muito, muito, muito. Mas a minha concentração ganhou à do
Van Breukelen. Se vires bem, a bola entrou muito, muito, muito junto à rede
lateral. Era impossível ele defender. Foi um golaço. De penálti mas golaço.
Empatámos 1-1. Ainda roubámos pontos à Irlanda [0-0] e depois só perdemos com a
Inglaterra [1-0]. Saímos desse Mundial com a sensação de dever cumprido. Um
pouco à imagem dos Jogos Olímpicos-84: passámos a fase de grupos e só fomos
eliminados nos quartos pela França, nada mais nada menos que a futura campeã.
9. E conte-me lá histórias do Beira-Mar. Tem noção dos primeiros
dias?
Claro que sim. Mesmo que quisesse, e não o queria, não conseguia
passar despercebido. As pessoas vinham ter comigo com um sorriso enorme.
Devo-lhes tudo. Fui tão bem recebido... A nível futebolístico, e assim de
repente, lembro-me de ter marcado na estreia [1-0 ao Estrela]. Depois marquei o
1-0 ao Espinho e mais dois ao Portimonense [2-0]. Sempre em casa. Éramos muito
fortes em casa. Aquilo
enchia de gente e levava-nos para outro patamar. Claro que havia o factor
campo.
10. O de jogar em casa?
Os Invernos daquela altura eram muito chuvosos. Pelo menos em Aveiro. Aliás , era
até engraçado sair do balneário para o aquecimento ou para o jogo e ficarmos
com a visão inundada de guarda-chuvas. Não havia ninguém sem guarda-chuva. O
vendedor dos guarda-chuvas era um sortudo, digo-te. Bom, com tanta chuva, o
relvado ficava lamacento e nós optávamos, e bem, por treinar no pelado. Uma
semana inteira aí. Quando chegava a hora do jogo entrávamos no relvado como se
fosse a nossa primeira vez. E fazíamos coisas magníficas. Como ganhar ao
Sporting de Figo e Balakov [1-0 em Setembro de 1992].
11. Ah, eram esses os outros grandes para além de Vítor Baía?
Sim, mas há mais, muito mais. Olha, no Beira-Mar temos o Redondo e
o Dinis, meus grandes amigos de Aveiro. No Benfica havia Paulo Sousa e Rui
Costa, além de Paneira, Magnusson, Ricardo [Gomes], Valdo. No Porto havia o Couto
[silêncio]. Sim, passar pelo Couto foi das coisas mais difíceis que fiz.
in "ionline.pt"
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