Guarda-redes do Porto
durante 13 épocas, campeão nacional em 1959 e vencedor da Taça de Portugal em
1968, tem hoje 81 anos e é dono da clínica Boa-Hora. Fala-nos de carros,
futebol sem luvas, estágios sem fim, Pedroto e, claro, do Mundial-66 em
Inglaterra
A jogada começa no guarda-redes Vítor Baía. A bola passa pelo
central Jorge Andrade. Este lateraliza para Branco, que solicita a entrada de
rompante do avançado Magnusson. O sueco remata forte mas Américo defende bem,
com a segurança que se lhe reconhece. Isto é, atenção, futebol imaginário. Ou
melhor, é o futebol do i,
da rubrica 11 perguntas a... Hoje é o quinto capítulo de uma série iniciada em Dezembro. Desconhece-se
ainda o desenrolar da jogada. Para onde vai a bola: será canto? Será
lançamento? Ressalto não é certamente. Aventurámo-nos a telefonar para um
senhor de 81 anos chamado Américo.
Em 13 épocas de FCP, ganha a Liga 58-59 e levanta a Taça 67-68
entre 255 jogos de azul e branco, com mais vitórias que derrotas (150-45) e um
número curioso de partidas a zero (101) em tempos idos, com Eusébio no Benfica.
Matateu no Belenenses e Figueiredo no Sporting. Pelo meio, 15
internacionalizações pela selecção AA e ainda a convocatória para o Mundial-66,
juntamente com outros dois portistas (Festa e Custódio Pinto).
Como se isso fosse pouco, Américo joga com José Maria Pedroto e é
treinado por ele. Em semana de comemoração dos 30 anos do adeus do Zé do Boné,
nada mais lógico do que chegar à fala com um homem animado, vivido, bem-falante
e dotado de uma memória de elefante. Américo responde em directo da Rua
Ribeirinho 58, em São Paio
de Oleiros. É ele o proprietário e gerente da Clínica Boa-Hora, fundada por si
no dia 6 de Março de 1989.
1. Como é que chega ao FC Porto?
Um dia, em 1949, decidi apresentar-me aos treinos do FC Porto, ali
na Constituição - só pouco depois é que fomos para as Antas. Fui de olhos
fechados, sem saber muito bem o que apanhar pela frente. Achava que tinha
mérito para jogar na equipa da minha vida. Fui lá e conquistei o meu espaço.
Joguei dois anos nos juniores e depois subi à primeira equipa, um sonho tornado
realidade. Só via Porto à minha frente. Agora está a ver, um jovem de 16 anos
vê o sonho de uma carreira à frente e não mais o larga. Aconteceu comigo e
ainda hoje me sinto sortudo.
2. Quando lá chegou, à Constituição, já era para guarda-redes
ou...?
Era o meu sonho de menino. Sempre joguei à baliza, até na escola.
É uma profissão inexplicável. Gostava de estar ali, no meu canto, a defender e
[começa a rir-se] a irritar os outros. Gostava mesmo disso. Eles rematavam,
rematavam, rematavam e não marcavam. Às vezes, até me pediam para sair da
baliza.
3. Com ou sem luvas?
Sem luvas. Só usava luvas nos dias de chuva. De resto,era com as
mãos. Nada melhor que sentir a bola bem segura, sentir o couro. Se doía? Qual
quê?! Nada disso, nada disso. A bola era macia [o homem diverte-se com a sua
própria história e ri-se sem parar].
4. Nem com os remates do Eusébio?
Não, nem pensar. As pessoas falam muito da potência dos seus
remates - e eram fortes, lá isso eram - mas o mais terrível era a
disponibilidade dele para atirar à baliza. É que ele rematava de qualquer lado
e de qualquer jeito. Se a bola viesse torta, ele fazia por atirá-la à baliza.
Parte da sua genialidade é disso mesmo. Espontaneidade no remate. Aliado à
pontaria, pois claro. De nada vale atirar com força e ao lado ou por cima. O
Eusébio era diferente. Quanto atirava, era para a baliza e eu que me entendesse
com a bola. Outro pormenor delicioso do Eusébio era a lealdade. Fomos sempre amigos
e eu costumava dizer-lhe que nunca me tinha marcado cara a cara.
5. Não era o Américo conhecido como o guarda-redes...?
Suicida. Isso foram pessoas como você, jornalistas, a chamarem-me
isso. Nunca soube de onde isso veio. E tive mais, muitas mais. Era o suicida,
depois as mãos disto, as mãos daquilo e até fui o leiteiro, porque, diziam
vocês, tinha uma vaca em casa para tirar o leite e ter sorte. A verdade é que
saía muito da minha área, fazia por isso. Se visse que a bola estava ao meu
alcance, ia lá para afastá-la da área. Os guarda-redes de hoje jogam muito na
sua área. Eu jogava aí mas também saía da minha zona de conforto.
6. Só não pôde sair dessa zona no Mundial-66. Portugal fez seis
jogos e utilizou dois guarda-redes. Primeiro o Carvalho, depois o José Pereira.
Só o Américo não jogou. Porquê?
Uns anos depois, o senhor que tomou essa decisão pediu-me muitas
desculpas pelo facto. Estou a falar do Manuel da Luz Afonso, o seleccionador.
Sim senhor, o Otto Glória era o treinador de campo e decidia muitas coisas mas
a última palavra era sempre do Manuel da Luz Afonso. Começou o Carvalho e até
nem esteve mal. Não percebi o porquê de o tirarem assim de repente, a meio da
prova. Depois entrou o José Pereira, que quase não era internacional nem jogou
assim tão bem. E eu sem jogar. Veja lá bem: o Otto Glória foi treinador do
Benfica e do Sporting, o Manuel Afonso tinha sido director do Benfica e o Gomes
da Silva, o coordenador da selecção, era do Belenenses. Por isso, os jogadores
eram quase sempre os mesmos, sobretudo do meio-campo para a frente, e nós, os
suplentes, a ver a bola desde a bancada.
7. Da bancada?
Naquela altura, só jogavam onze. Não havia suplentes. Esses iam
para a bancada. Podíamos, isso sim, visitar o balneário ao intervalo e no final
do jogo. Muitos atribuem a mudança de local à última hora da meia-final com a
Inglaterra de Liverpool para Londres, mas o nosso grande erro foi não poupar
jogadores imprescíndiveis nos quartos-de-final com a Coreia do Norte. Ainda por
cima, entrámos convecidos que íamos ganhar fácil e apanhámos um valente susto.
A perder por 3-0, tivemos de jogar mais que o dobro para passar a eliminatória
e isso custou-nos fisicamente. E porquê? Só jogavam os mesmos: Jaime Graça,
Coluna, Simões e outros.
8. Depois desse Mundial, volta à baliza da selecção e até brilha
em Itália, não é?
Empatámos 1-1 [Março de 1967] e ninguém previa esse resultado, até
porque a Itália estava a preparar-se para o Euro-68, que haveria de ganhar em
casa, e era francamente favorita. Os jornais até falavam em quatro ou cinco de
diferença. Foi um a um e só porque o José Augusto lembrou-se de fintar dentro
da área. Ele perdeu a bola e o italiano [Capellini] marcou. Ainda me lembro bem
daquilo que o seleccionador deles disse depois, na conferência de imprensa:
'com o guarda-redes de Portugal na baliza de Itália, tínhamos sido campeões do
Mundo [em 1966]'. Nesse jogo, há outro detalhe. Eu lesionei um grande jogador,
o Riva [avançado do Cagliari, um dos bambino d'oro de Itália]. Sem querer,
parti-lhe a perna: eu saí da baliza a olhar para a bola, no ar, e choquei
violentamente com ele. A tristeza invadiu-me completamente e nem a visita ao
hospital diminui. Só fiquei completamente aliviado quando ouvi falar do seu
regresso. Até foi a tempo de ser campeão europeu em 1968 e tudo.
9. Havia estágios nos anos 60?
Se havia! De sexta a segunda-feira. Com o Pedroto, de quinta a
segunda. Eu e o Pedroto fomos campeões nacionais como jogadores em 1959,
treinados por um brasileiro pesado de aspecto e feitio, o [Dorival] Yustrich, e
depois ele treinou-me no Porto. Entrávamos no estádio à quinta e, às vezes, com
jogos europeus do Porto ou com a selecção pelo meio, só via a minha mulher 15
dias depois. Era uma vida muito complicada. No ano do Mundial, veja bem, estive
três meses sem ir a casa, de Maio até Agosto.
10. E quando voltou a Portugal, agarrou-se ao seu Triumph
Spitfire? Li isso no site Bibó Porto...
[lá está a gargalhada por antecipação] Tinha um Simca e
sugeriram-me trocá-lo por esse Triumph Spitfire. Nem pensei duas vezes, aceitei
logo. Era uma acção promocional. Bastava-me andar com ele e pronto. Era um
carro original, raramente visto em Portugal. Guiá-lo era uma maravilha.
11. Qual a sua maior alegria desportiva?
O ser campeão, o ganhar a Taça 68 no 2-1 ao Vitória de Setúbal, o
ir à selecção, mas amigo, desculpe lá, não posso falar mais. Estão todos a
olhar para mim aqui na clínica e eu tenho de trabalhar, tal como você, não é?
Portanto, vamos ao trabalho. Se quiser, apareça aqui e falamos mais um pouco, o
que você quiser. Agora é que não dá, tenho de desligar. Abraço, abraço.
in "ionline.pt"
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