Com uma perna mais curta que outra, o lateral- -esquerdo brasileiro lembra alguns golos da carreira e ainda a recusa de uma
palmilha, a vitória das velhinhas do seu prédio no Rio de Janeiro e a falta
cavada com a Holanda no glorioso Mundial-94
Cláudio Vaz Ibrahim Leal. Dito assim ninguém o conhece. Se
dissermos Branco, aí o caso muda de figura. É a sua alcunha, o nome pelo qual
se torna famoso em todo o mundo, sobretudo depois de ganhar dois títulos pela
selecção brasileira (Copa América-89 e Mundial-94). E mais dois no Porto
(Campeonato-1990 e Supertaça-1991). Contratado ao Brescia, o lateral-esquerdo
chega às Antas no Verão de 1988 e é lançado por Quinito, em Guimarães, no mesmo
dia que Vítor Baía. Curiosamente (ou não), os dois têm estátuas no museu como
parte do onze ideal na centenária história do clube, ao lado de João Pinto,
Aloísio, Ricardo Carvalho, André, Madjer, Deco, Gomes, Hulk e Futre. Se
apanhámos Vítor Baía há duas semanas e Jorge Andrade há uma, agora é a vez de
Branco. Depois de um guarda-redes e um central, é a vez de um lateral. Todos
dos anos 90, todos com um passado portista. Que isto não seja visto como
decreto-lei, é apenas coincidência. Branco mais branco não há.
1. Cláudio Vaz Ibrahim Leal. O Branco surge de onde?
Olha, comecei a jogar nas ruas de Bagé, mais precisamente na Rua
Valdemar Machado. Como Bagé pertence ao estado do Rio Grande do Sul, fazia
constantemente um frio danado. Por isso tinha de entrar num pavilhão, né?
[risos] Aí entrei num clube chamado Aimoré, de futebol de salão. Na minha
equipa de cinco, tinha eu e mais quatro negros. Ainda hoje todo o mundo me
trata por Branco quando me vê na rua. Estou a falar dos adeptos, claro. Lá em
casa é diferente. Então, Rui, sou duas pessoas: o Cláudio e o Branco.
2. Ambos com um pontapé canhão?
Aí é mais Branco, mas o Cláudio também é forte nesse tipo de
lances, eheheh.
3. É verdade que tem uma perna mais curta que a outra?
É, isso sim. Sou como o Roberto Dinamite, por exemplo. Uma vez, o
médico da selecção brasileira, o Lídio [Toledo], quis dar-me uma palmilha e eu
recusei. Imagina que o meu pontapé enfraquecia ou que o meu jogo já não seria
mais o mesmo? Não dava para aceitar. Então joguei sempre com um pequeno
desnível. Além do Roberto Dinamite, também há o Garrincha. Homens assim chegam
longe, eheheheheh.
4. Por falar nisso, como é o teu trajecto para sair de Bagé para o
Rio de Janeiro?
Já te falei do Aimoré, futebol de salão. Daí fui para as
escolinhas do Bagé, um dos dois clubes profissionais da cidade. O outro é o
Guarany, onde cheguei a jogar nos juniores e até na equipa principal, como no
Internacional. Num desses poucos jogos, um olheiro do Fluminense viu-me e
interessou-se por mim. Claro que convém nunca esquecer a minha trajectória na
selecção gaúcha de juniores. Na altura havia esses torneios estaduais de
selecções. Se alguém se desse bem, era meio caminho andado para o sucesso. E
nós fomos campeões brasileiros em 1981. Então, entre a selecção gaúcha e o
Guarany, o Fluminense encontrou-me. Nunca mais me esqueço, um grande homem, um
grande tricolor [alcunha do Fluminense] chamado Tadeu. Ele chegou na
quinta-feira e levou-me para o Rio de Janeiro na sexta. Foi tudo muito muito
rápido. E eu era novíssimo.
5. Como era a tua vida no Rio de Janeiro?
Xiiiiii, muito boa. Vivia no bairro Flamengo com uma turma gaúcha
[três amigos jogadores: Tato, Jandir e René] e as gatas apanhavam-nos de mota à
porta do prédio. Também vivi no bairro de Botafogo [com a mesma turma gaúcha
mais o paranaense Leomir] e, ao que parece, estivemos para ser expulsos.
Acredita que fomos salvos pelas velhinhas? Ao que parece, a síndica
[administradora do condomínio] reuniu 100 assinaturas para nos expulsar porque
fazíamos festas com barulho e pessoas nuas na varanda. E o que fizeram as
velhinhas? Defenderam-nos, disseram a todo o mundo que nós éramos a graça
daquele prédio.
6. No Fluminense o Branco ganha projecção e títulos. É o melhor
período da sua vida?
É assim, Rui, o time da minha vida é o Fluminense. Porque joguei
numa equipa cheia de estrelas, como Washington, Assis, Renato, Ricardo [Gomes],
entre outros, porque fomos tricampeões cariocas e campeões do Brasil em 1984, e
porque vivi lá o jogo da minha carreira, o jogo perfeito que nos conduziu ao
tal título brasileiro de há 30 anos. Foi no Morumbi, com o Corinthians. Eles
vinham de uma vitória importante com o Flamengo e nós tínhamos de ganhar.
Ficámos hospedados lá no Morumbi e aquilo foi uma noite impossível de se
dormir, com tantos fogos [very-light]. De manhã, quando nos juntámos ao
pequeno-almoço, jurámos que íamos reverter essa situação. Começámos a dizer uns
aos outros coisas do tipo "se eles não nos deixaram dormir agora vamos
acordá-los com o nosso jogo". E assim foi, 2-0. Um golo em cada parte. O
primeiro até fui eu que marquei o livre para o 1-0 do Tato.
7. E ele meteu a cabeça?
Eheheh, calma, não foi um remate com força. Foi um livre descaído
para a esquerda. Bati a bola e o Tato cabeceou para o golo. O 2-0 foi do Assis.
O treinador desse Fluminense era o Carlos Alberto Parreira. E esse Fluminense
era grande pelo futebol mas também pela camaradagem fora do campo. Nunca vi um
time que comesse tanto churrasco e bebesse tanta cerveja. Aquilo era um
festival sem fim. Ganhámos muito com isso.
8. Pergunto isso porque há aquela história de teres danificado um
defesa escocês (MacLeod) no Mundial-90.
Isso é mito, pura bobagem. Nunca matei ninguém, já ouvi essa
história dezenas, centenas de vezes. Muitas vezes o torcedor vem ter comigo na
rua e já fala "você matou o cara uma vez". Nem sequer questiona, já
diz aquilo como se fosse uma verdade absoluta. Calma, graças a Deus o cara não
morreu. Ficou mal porque a bola acertou-lhe em cheio na cara. Perdeu os
sentidos e foi para o hospital mas está bem. Quer dizer, nunca mais falei com
ele mas sei de fonte segura que ficou bem. Foi só um susto. Já passou.
9. No Mundial seguinte a tua bomba só parou na baliza da Holanda.
Lembras-te?
Claro que sim, é o momento-chave da minha carreira. É o golo que
todo o brasileiro se recorda. E há pormenores curiosos, como o facto de eu ter
saído com a bola na nossa defesa. O Overmars perseguiu-me e levou com uma
mãozada no rosto. Era falta, mas o árbitro mandou seguir. Passei o meio-campo e
depois por entre dois adversários. Um deles meteu-me a perna à frente e eu nem
hesitei: mergulhei para a falta. O árbitro atendeu-me. Atenção que eu nem era
titular nessa Copa. O lugar de lateral-esquerdo era do Leonardo, que fora
expulso nos oitavos-de-final, com os EUA. Esse jogo com a Holanda é o dos
quartos. No livre, a barreira deles era de cinco homens. Peguei bem na bola,
com efeito. A curva foi evidente mas também contei com a colaboração do
Romário, que tirou o corpo e permitiu que a bola passasse entre ele e um defesa
até beijar as redes. Foi um momento lindo, inesquecível. Naquela altura o
Brasil só conseguiria marcar à Holanda de bola parada: ou escanteio [canto] ou
penálti ou livre. Eles estavam a dominar-nos, depois de terem marcado dois
golos para chegar ao empate. Esse livre foi a nossa salvação. E a minha maior
alegria. Só o nascimento dos meus filhos supera esse acontecimento.
10. Quantos golos marcaste assim no FC Porto?
Muitos. Além de mim, também havia o Geraldão. Nós os dois batíamos
as faltas com muita força e colocação, cada qual ao seu estilo. Os nossos
treinos eram divertidos. Para nós, claro. Para os guarda-redes... coitados. Mas
nem sempre a bola ia à baliza. Preferíamos marcar golo nos jogos, eheheheheh.
No Porto devo ter marcado uns dez [na verdade, 12]. Lembro-me de ter marcado
dois de uma só vez [3-1 à União da Madeira, no Funchal]. E lembro-me da minha
estreia, com o Vitória, lá em Guimarães, no lugar do Inácio, que se lesionara
no jogo anterior. Lançou-me o Quinito. Nessa tarde o Vítor Baía foi o outro
estreante do Porto. Sei que fiz história no Porto porque sim e porque vi uma
foto do Deco com uma estátua minha no museu. Fomos campeões de Portugal em
1990, um ano depois de ter ganho a Copa América pela selecção brasileira e um
ano antes de ter saído para o Genoa.
11. Génova, obrigado por teres falado nisso. Sei de um golo
histórico...
Com a Sampdoria, no dérbi de Génova. Eles foram campeões
italianos, pela primeira e única vez [90-91], mas não nos conseguiram ganhar em
180 minutos: 0-0 em casa e 2-1 fora. Nesse 2-1, nós marcámos [Eranio], eles
empatam [Vialli] e eu faço o 2-1 de livre indirecto. Acredita ou não, aquele
golo não foi só meu, foi também de Deus. O efeito da bola, a força do remate e
a colocação tiveram ajuda divina. O Genoa acabou essa época em quarto lugar,
ainda hoje a melhor classificação de sempre do pós-guerra, e eu diverti-me
imenso. Em Génova, os dérbis com a Sampdoria eram vividos com tal intensidade
que não se podia sair de casa naquela semana. Tínhamos de ficar em regime de
clausura.
in "ionline.pr"
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