Foi campeão no Benfica e no FC Porto (e no Sporting). Um defesa ao ataque
É o único jogador campeão português pelos três grandes (até repetiu o título em todos), mas, por incrível que pareça, tem outros motivos para se orgulhar. Afinal, trata-se de um homem que triunfou por conta própria e escalou uma infinidade de degraus até chegar ao topo. Vindo de Trás-os-Montes, chegou a Lisboa aos 13 anos com ideias fixas: ser jogador de futebol no Benfica. Isso, porém, não foi possível, pois a oferta do Benfica (500 escudos) era inferior ao seu ordenado como aprendiz de uma oficina de automóveis na Póvoa de Santo Adrião (2500). Arranjaram-se alternativas, como o Várzea e o Odivelas, mas o Benfica voltou à carga no ano seguinte, com quatro contos. Começou nos juvenis e entrou para os seniores em 1975, com a espinhosa missão de substituir Humberto Coelho, o grande capitão que saíra para o Paris SG. Com garra e habilidade, Eurico superou os primeiros tempos de desconfiança e, quando Humberto regressou, em 1977, já era titular indiscutível, com voz activa na equipa.
O espaço era seu e só deixou de o ser em 1979, após ruptura com a direcção. Transitou para o Sporting, onde foi campeão logo no ano seguinte, e bicampeão em 1982. Depois... bom, depois, completou o ciclo e foi fundamental no mágico FC Porto de Artur Jorge, antes de se lesionar gravemente em Agosto de 1985, após partir a perna num lance com Nunes (Benfica), na primeira jornada do campeonato nacional. Foi o seu 22.º e último clássico da carreira.
Lembra-se?
Lembro-me. Ganhámos 2-0 com golos de Juary e Gomes. No golo do Juary (4'), ainda participei nos festejos. No outro (79') já não.
Então?
Lesionei-me aos 17 minutos e foi o meu último jogo pelo FC Porto. Depois só regressaria em Setembro de 1987, pelo V. Setúbal.
Mas o que aconteceu?
O Nunes entrou de pé em riste. Quando alguém entra de maneira agressiva, nunca pensa que vai aleijar. Mas os riscos são sempre maiores. Eu afastei de carrinho e ele mete a bota por cima. Bastava que ele se encolhesse. Foi um lance evitável. Nunca fiz isso a ninguém. Nunca ataquei o adversário de pé em riste. E acredito sinceramente que não era para partir mas se estás a conduzir na estrada de olhos fechados, arriscas-te a ter problemas.
E a reacção do Nunes?
Além de nunca ter feito um telefonema que fosse, ainda fez umas declarações públicas desagradáveis, qualquer coisa como ''não tenho culpa que ele seja fraco''. Enfim, a gente do futebol sabe que o Nunes não fazia faltas ao preço do combate físico. Era ao preço da maldade. Que ele tenha saúde na vida. E eu também. Mas não há nada a fazer.
Tem mágoa?
Há mágoa, mas não me vejo perseguido por ela. Uma vez, na Luz, num lance acidental junto à linha lateral, o Marco Aurélio despacha uma bola, o Toni encolhe-se e chocam. O Marco Aurélio partiu a perna...
Então mas esse não é o jogo em que Toni começa a chorar e pede para sair, emocionado por ter participado nesse lance?
É só para tu veres o contraste.
O Eurico lesionou-se em 1985 e só voltou em 1987. Porquê tanto tempo?
O médico disse-me: "Vou fazer-te uma operação que é uma novidade. A capacidade de recuperação é metade do habitual." E deram-me oito meses. Passado esse tempo, recebo a notícia de que tenho mais oito/dez meses de lesão. Assustei-me. Marquei o melhor hospital ortopédico de Londres e procurei alguém neutro. E esse médico disse-me que a minha tíbia só conseguia suportar as cargas que a alta competição exige entre 10/12 meses. Vim de Londres desiludido. Então, por interferência de alguém próximo de mim, dirijo-me ao padre Miguel. Perguntam--me se acredito em santos e eu digo que sim. Visitei o padre Miguel e passei uma tarde com ele. Só um parêntesis: Conheces o João Gabriel? Agora director de comunicação do Benfica? Antes, ele era jornalista, e da SIC. Uma vez, fez um trabalho sobre o padre Miguel. Pronto, o padre Miguel viu-me e... ao fim de um mês e meio, estava pronto para treinar. Fiz uma radiografia e mostrei-a ao médico que me operou.
E ele?
Caiu na cadeira, redondo. Deu-me alta numa sexta-feira. E marquei um jantar no sábado, na casa de uns amigos, perto do Porto, para celebrar o meu regresso aos treinos na segunda-feira seguinte. Nessa altura, eu tinha uma empresa chamada Eurima Vinhos. De Eurico e Manuel. O meu amigo Manuel ficava em Espinho e eu como morava em Gaia levei a casa uma das nossas empregadas, que era promotora e nessa noite tinha estado em Oliveira de Azeméis. Perto da Boavista, tenho um acidente de viação. O piso estava com a chamada cacimba, era 1h45. Como saí do hospital às 4h30, assumiram essa como a hora a que eu tinha tido o acidente. No dia seguinte, já diziam que havia mulheres no carro, às tantas da noite.
Mas o que lhe aconteceu?
Bati com o queixo no volante e desmaiei. Tiraram-me para fora com o carro a arder. A senhora que ia ao meu lado partiu a perna no mesmo sítio onde eu parti no lance com o Nunes. Eu fui ao Hospital Santo António e fiz uma radiografia ao pé. Acredita que eu fiz tanta força no travão que consegui vergá-lo? E aquilo era um Mercedes 360, automático. Fiz uma fissura no osso escafóide mas isso não se viu nas radiografias. Oito dias depois, lá apareci nos treinos do FC Porto. Com a dor no pé, coxeava um pouco a correr. Dizia que tinha dores mas ninguém ligou muito. Só ao oitavo dia é que dei um murro na mesa e disse que queria que me fizessem uma outra radiografia. Ao 12.º dia já todos tinham percebido que se me têm detectado a fissura, ter-me-iam imobilizado o pé e não passava por isso.
Eu ia dizer já chega! Mas há uma outra história a respeito da sua lesão com o Nunes. Um escorpião nas suas calças de fato de treino...
É verdade. O FC Porto foi ao Canadá fazer dois jogos de fim de época em 1985. No primeiro jogo, fissurei o dedo mindinho do pé. Como percebi que fisicamente não ia dar para fazer o segundo jogo, pedi aos dirigentes do FC Porto para me deixarem ir ao Porto ter umas férias em família, até porque 20 dias depois teria de regressar ao Canadá, onde iria participar na equipa do Resto do Mundo, convocado pelo Eriksson, contra o Canadá. O FC Porto deixou-me e entreguei as minhas calças de fato de treino ao roupeiro. A coisa passou-se. Fui ao Canadá e fiz o tal jogo do Resto do Mundo. No começo da época seguinte, fomos à Corunha, de autocarro, para o Torneio Teresa Herrera, e entregaram-me o meu fato de treino. Qual não é o meu espanto quando detecto um escorpião enrolado numa folha de papel com uma oração de plástico transparente, enrolada num fio vermelho. Pensei, ''caraças, mas o que é isto?'', mas não disse nada. Nesse Teresa Herrera, perdemos a final com o Atlético Madrid com um penálti roubado pelo árbitro, feito por mim. Em toda a carreira, se eu fiz dois penáltis, foi muito... Barafustei com o árbitro e fui expulso. Dias depois, na primeira jornada do campeonato, com o Benfica, vamos para estágio na Batalha e entrego o escorpião ao roupeiro. Pergunto-lhe o que era aquilo e ele diz que nada sabe. Bem, fui a jogo. Aos 17 minutos, saio lesionado! Tenho duas conclusões: ou alguém vestiu as minhas calças de fato de treino no Canadá ou alguém meteu aquilo de propósito nas calças. Na área da parapsicologia, aquilo foi intencional. Mas não era para mim, era para alguém. Fui eu o atingido e fui eu a vítima. Se calhar, era amuleto de defesa de alguém, mas para mim foi um amuleto com alguma maldade.
A verdade é que foi bicampeão nacional nos três grandes e isso é história.
No final do século passado, o jornal "Record" fez um livro dos 100 melhores jogadores portugueses e eu estou lá. Levei aquele calhamaço ao Bobby Robson para ele assinar. Ele ainda treinava o FC Porto. Quando ele viu o que eu tinha ganho, disse-me: ''Tu é que devias assinar isto para mim. Tu, em Inglaterra, tinhas emprego para toda a vida e até uma estátua''.
E nos três grandes, outra curiosidade: sempre 89 jogos para o campeonato!
Noutro dia, num programa da RTPN, puxaram os meus dados e foi a primeira vez que percebi isso. É sinal de regularidade. De boa vida. De cumprimento profissional exemplar. E de uma mentalidade muito honesta.
Isso no Porto vale ouro. Conhecem-se histórias de detectives, sobretudo com o Futre...
O futebol é adrenalina. Um frade nunca seria jogador de futebol e um futebolista não tinha capacidade para ser frade. Sempre cumpri horários. Sempre. Agora quando me lesionei em 1985, o Octávio [Machado] andava a controlar-me para outros efeitos, que não a capacidade de trabalho. Observava-me com o intuito de me prejudicar. Quando temos fracturas ósseas é o tempo que as cura, não os tratamentos. Os médicos diziam--me para aproveitar e gozar a vida. "Não treinas mas também não precisas de ficar em casa." Assim fiz. Depois comecei a ouvir as pessoas a dizer que tinha chegado a casa às 2 ou 3 da manhã. Certo, certíssimo, mas no dia seguinte eu não ia treinar... O Futre? O Futre talvez desse trabalho aos detectives [risos].
E aos adversários também.
Claro, um fenómeno. Eu conhecia-o dos meus tempos no Sporting, porque ele era júnior e, às vezes, treinava connosco. Quando cá em cima [Porto] me perguntaram por ele, disse-lhes que era um valor seguro. Em 1984, o Sporting equacionava emprestá-lo à Académica. E o FC Porto, através de um empresário galego, foi a Lisboa e trouxe-o para o Porto. Espécie de rapto. Consentido, claro. Na quarta-feira, toda a equipa do FC Porto foi para estágio, para manter o Futre ao nosso lado e para ele assinar o contrato.
Ora aí está uma situação que o Eurico conhece bem. Saltou do Benfica para o Sporting e do Sporting para o FC Porto.
E as duas situações foram parecidas. No final dos anos 70, havia o livre direito de opção no final do contrato. Só não podíamos sair para o estrangeiro. Nantes e St. Etienne interessaram-se por mim mas o Benfica não me deixou sair. Até porque o Humberto já tinha ido para o PSG. Ok, muito bem. Então, quando os meus três anos de contrato estavam quase no fim, pedi um aumento de 15 contos por mês para renovar. Um dirigente [Romão Martins] disse-me que não, que era um jogador da casa e não acreditou na minha saída. Já tinha sido assim com o Artur - o Ruço - e o Jordão. Tive a dignidade de deixar acabar o meu contrato com o Benfica a 31 de Julho. No dia 1 de Agosto, assinei pelo Sporting.
E não houve problemas por causa disso? Pessoas na rua ou em restaurantes a incomodá-lo?
Nãããã, nada disso. Muita gente até me deu os parabéns pela frontalidade de lutar pelo meu aumento. Bastava o Benfica organizar um particular e, pronto, garantia o meu aumento de ordenado. Mas não.
E do Sporting para o FC Porto?
Foi parecido. Assinei por três anos, fui bicampeão nacional, ganhei uma Taça e uma Supertaça de Portugal. Quando chegou a hora de renovar, pedi ao João Rocha um aumento. Ele negou. Então propus-lhe ganhar o mesmo mas jogando apenas seis meses no Sporting. Nos outros quatro, ia para a América. Até já tinha equipa, os Toronto Blizzard. Naquela altura, era moda meia época em Portugal e outra meia nos EUA. O Artur, o Ruço, fazia isso. E o Eusébio também já fizera. O João Rocha disse-me que não. Outra vez. E até pediu ao treinador [Malcolm Allison] para não me pôr a jogar na final da Taça de Portugal, com o Braga [4-0]. Se é assim... Esperei que o contrato acabasse e já estava com a cabeça nos EUA, quando o Pedroto me liga. A pedir-me para ir ao Porto. No dia seguinte, já estava lá, a assinar o contrato.
Já é uma tradição portista...
Sim, o FC Porto tem feeling para negócios. Entre uma jarra de prata e outra de casquilha, eles percebem imediatamente qual é a de prata, enquanto os outros ainda estão a ver de que é feito o produto.
Então, o Eurico acompanhou o início da era Pinto da Costa.
Já aí carismático. Raramente estava connosco nas horas boas, mas estava sempre nas horas más. Havia ele e o Pedroto. Grande dupla. Uma vez, logo no meu início nas Antas, o Pedroto apresenta os prémios de jogos aos jogadores e eu digo-lhe que o Sporting e o Benfica pagavam muito melhor, sobretudo o Sporting, que pagava prémios mais valiosos que o ordenado. O Benfica já não era assim, embora os prémios fossem mais altos ainda que aqueles do FC Porto. O Pedroto fica a olhar para mim e pede-me para lhe dizer quanto é que o Sporting pagava.
E quanto era?
Já não me lembro. Naquele tempo, sim, lembrava-me. No dia seguinte, lá apareci com os valores do Sporting. Dei a folha ao Pedroto, ele reencaminhou-a ao Pinto da Costa e este dobrou os prémios do Sporting num abrir e piscar de olhos. E pronto!
...
Aquilo é uma máquina, o FC Porto! Eles também perceberam um truque do Benfica nos anos 60 e 70.
Então?
No final de cada época, o Benfica fazia as contas aos jogadores que lhes tinham roubado pontos e contratava-os. Na época seguinte, o Atlético, a CUF, o Barreirense e outros já não tinham esse ás, bem guardado pelo Benfica, que tinha um plantel de 35/40 jogadores. Os bons ficavam lá, o excedente ia rodando nos outros clubes, de confiança. E o que é que faz o FC Porto agora?
Isso é o FC Porto de Pinto da Costa.
Sim, exacto, o homem a quem eu lhe dei a minha camisola quando regressei aos relvados.
E o FC Porto de Pedroto?
Só lhe conto uma história. Lesionei-me duas vezes pelo FC Porto. Aquela de que já falámos e uma outra, em Portimão. O Rui Águas tinha uma maneira peculiar de saltar, de braços abertos. A saltar, o cotovelo dele acertou-me na cara. Partiu-me malares e maxilares. Tive de usar aparelho. Na véspera da segunda mão da meia-final da Taça das Taças, com o Aberdeen, lá na Escócia, depois de termos ganho 1-0 nas Antas, o Pedroto, numa fase inicial da convalescença, chama-me a casa e diz-me ''tens de jogar''. Eu respondo-lhe ''mas mister...'' Ele interrompe: ''Não quero que vás jogar. Só quero que estejas presente.'' E eu: ''Se você quer, dou o meu melhor.'' E joguei essa meia-final, famosa pelo golo do Vermelhinho [1-0]. E também joguei a final [perdida para a Juventus] Sempre com o aparelho nos dentes. Nem imaginas quantas vezes tiveram de me levar a papinha à boca!
Dos três grandes, onde preferiu ser campeão nacional?
No Sporting. Tem força clubística. É uma pena que agora já não seja assim. É aquele clube em que os sócios não deixam de ter um sentimento genuíno, muito próprio. E é o que tem ganho menos. Há qualquer coisa ali que devia ser estudado. Tanta grandeza, tanta força e tanta fidelidade. Falta gente com discurso e sangue à Sporting. Ao longo das décadas, o Sporting vai-se afastando dos grandes. É um clube de investimentos. Na minha altura, era um clube de vitórias. O que ainda sobrevive é a paixão dos adeptos pelo Sporting.
Depois dos três grandes, acabou a carreira em Setúbal, com duas épocas (1987-89). Ao lado de Meszaros, Jordão e Manuel Fernandes, seus companheiros no Sporting.
É verdade. Grandes amigos, grandes jogadores.
Há um golo do Jordão que circula aí como um dos mais espectaculares de sempre...
Sabes que estava a marcá-lo nesse dia [30 de Janeiro de 1983]? Eu. Antes de mais, adoro o Jordão. É um ser humano muito, muito, muito sui generis. É coerente e inteligente. Um dos meus melhores amigos do futebol. Cinco ou seis anos antes de acabar a carreira, já estava saturado do futebol. E era um predestinado. E um predestinado nunca se chateia do que gosta, mas o problema é este mundo do futebol. As pessoas e tudo aquilo que anda à volta dele. O que é que ele fez? Abandonou a carreira e orientou a sua vida pelas artes plásticas. É um homem realizado sob o ponto de vista mental.
E o golo?
Às vezes, ainda discuto com ele sobre se ele fez de propósito ou não. É uma bola cruzada, tipo centro-remate e ele antecipa-se ao defesa, que sou eu. Na antecipação, eu espero que ele controle a bola. Em vez disso, ele mete a parte lateral da bota, calcanhar, e atira à baliza do Amaral, que não tinha a mínima hipótese. Foi no topo sul do antigo Alvalade. Um golo de antologia. De museu. Esse jogo acabou 3-3 e ele marcou os três golos. Mas isso não é tudo. Havia gestos técnicos, dribles e golos nos treinos que nos faziam ficar a olhar para ele. Eu fui um privilegiado por trabalhar com ele. De verde e branco [Sporting e V. Setúbal]. E também de encarnado [Benfica e selecção nacional, no Euro-84].
in "ionline.pt"
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