Central português joga com o
10 no Estrela, dá uma Supertaça ao FCP, faz-se o melhor central do mundo no Depor
com ajuda de Molina e joga com Del Piero na Juventus
Há quem o apelide de charmoso mal o veja na televisão a apresentar
o 4x4x3 na RTP Informação. É_ele Jorge Manuel Almeida Gomes de Andrade. Fixe o
nome próprio mais o último apelido e, tchan tchan tchaaaaan, temos um dos
centrais portugueses mais competentes do século xxi._Sim, o Jorge Andrade. Bom
rapaz, sereno e humorista. Como jogador, bom rapaz, sereno e de fino recorde
técnico. Com ele não há cá charutos nem bolas para o quintal. Tudo, tudo, mas
tudo, tem de ser feito com classe e distinção. Cabeça levantada, bola no pé e
toma lá disto.
Em 12 épocas de carreira, Jorge deixa uma marca indelével nos
cinco clubes representados (Estrela, FC Porto, Depor, Juventus e
selecção)._Desde os tempos de Fernando Santos até aos de Claudio Ranieri,
passando por dois jotas do arco da velha (Jorge Jesus e Javier Irureta) mais
Luiz Felipe Scolari, é um rol de histórias sem fim, como a “fila indiana dois a
dois” de Jesus ou o voto de silêncio a Deco por dois anos após aquela expulsão
no_Dragão durante a primeira-mão da meia-final da Liga dos Campeões 2003-04.
Sempre no seu registo: de fino recorde técnico e humorista. Sempre tu cá tu lá
na arte da escrita. Sim, Jorge Andrade responde ao questionário por email com
uma nuance entre sorrisos: “O meu estilo é Saramago, poucas vírgulas.”
1. Entraste directamente no Estrela?
Eu vivia na rua atrás do campo do Estrela. Um dia, um amigo meu chamado
Vladimir levou-me a mim e a alguns colegas para um treino das escolinhas.
Quando entrei jogava do meio para a frente. Com a idade fui passando por
posições mais defensivas e com mais responsabilidade, tipo médio defensivo ou
central. Nos juniores jogávamos com o sistema de três centrais e eu à frente
deles. Na passagem para os seniores tive a mesma dificuldade de integração e
então jogava mais como médio defensivo, até me impor a central.
2. Porque jogaste com o número 10?
Foi estranho jogar com o 10, ainda por cima nos primeiros anos de profissional
e a central. Tive a colaboração especial do José Luís, actual secretário
técnico do Belenenses, que guardou esse número especialmente para mim depois da
saída do sueco Andersson. Foi um presente, claro: ser o 10 não é para qualquer
um.
3. Estreaste-te na 1.a divisão com Fernando Santos (e até
marcaste ao Benfica). Como era ele?
Era um treinador muito fechado. A nível de treino, com métodos muito rigorosos,
a roçar o militar. Todos os dias passava por ele dizia-lhe “bom dia, mister” e
nunca tinha resposta. Depois de todo o ano estar sem resposta, achei que não
devia dizer bom dia. Ao passar pelo mister sem lhe dizer nada levei logo com um
“não se diz bom dia, miúdo?!” Outra: uma vez tive de faltar a um treino para ir
a um exame de Matemática do 12.o ano. Não só me libertou para o exame como se
ofereceu para indicar uma professora para dar me explicações. Um grande
detalhe! No Porto já o encontrei de cara lavada e sem barba, todo cavalheiro.
Foi das pessoas que melhor perceberam muito cedo que a imagem faz toda a
diferença.
4. Só começaste a jogar com regularidade na era Jorge Jesus,
em 99-00. Como se deu a aposta dele em ti?
Os seus métodos de treino eram parecidos com os que usávamos nos juniores com o
Miguel Quaresma, actual adjunto de Jesus no Benfica._Como tal, a minha
adaptação aos seus métodos foi muito rápida e sempre que possível era usado
como cobaia para os testes físicos pela minha grande aptidão. Achava fascinante
jogadores como Rebelo, Fonseca e Leal, todos com mais de 35 anos, conseguirem
superar todos aqueles treinos físicos violentos. Mas as coisas mais engraçadas
eram sempre quando o mister conseguia organizar a equipa em pares de três e
filas indianas dois a dois. Um craque! Nas palestras antes do jogo usava pedras
magnéticas e sempre que caía uma peça ele dizia “já me estás a querer lixar o
jogo mas não consegues”. E sempre que acertava no 11 do adversário ou em factos
do jogo dizia: “Muitos pensam que sou bruxo, mas não sou.” Ele tinha de facto
uma capacidade forte de antever cenários futuros.
5. Transferiste-te para o Porto em 2002 e ganhaste Taça mais
Supertaça. Nesta última foste o autor do golo decisivo no 1-0 ao Boavista. Como
é ser-se herói por um dia?
Sinceramente, das coisas mais bonitas foi ganhar ao Boavista, então o campeão
em título. Ser herói num clube como o FC Porto é difícil, mas todo o jogador
deveria passar por aquela casa para perceber o carinho daquela estrutura. Há
quem não tenha tido a sorte de ser assim tratado, mas posso dizer que fiz e
trabalhei para poder usufruir desse estatuto de herói.
6. Mas, há sempre um mas, não foste campeão nacional em
nenhuma das duas épocas. Sentiste essa pressão por parte dos adeptos do clube
no dia-a-dia?
Os dois anos do Porto foram fantásticos e vividos de tal forma intensamente que
até dá ideia que foram mais. O envolvimento das pessoas da cidade com o clube é
uma coisa fora do normal e tive a sorte de ter pessoas como Domingos Pereira,
que nos ia buscar a casa para as coisas mais banais do mundo para tudo correr
na perfeição. Eu tive a sorte de ser bem acompanhado mas também sei ver que a
obsessão por querer com que tudo seja perfeito para os jogadores deixe
episódios caricatos, como o de ir a Coimbra ter com Mário Monteiro, actual
preparador físico do Benfica, e ser confrontado com isso no dia seguinte.
Estranho. Mas isso faz com que os jogadores sejam mais responsáveis e se
concentrem no essencial, que é treinar e jogar futebol.
7. Porquê a ida para o Deportivo?
O primeiro ano no Porto foi maravilhoso. Comecei a jogar em Janeiro e as
pessoas foram surpreendidas pela inclusão de um jogador novo no eixo da defesa
quando os centrais titulares eram dois monstros do futebol português como
Aloísio e Jorge Costa. Existiram logo abordagens, mas como era o meu primeiro
ano foi decidido que ficasse mais uma época para cimentar o meu
desenvolvimento. Após o Mundial-2002 e a entrada do mister José Mourinho, foi
decidida a minha venda. A necessidade de o Porto vender e de eu ser o jogador
com mais mercado depois de Deco fez com que saísse para o Depor, vice-campeão
espanhol e vencedor da Taça do Rei. Lá encontrei uma realidade totalmente
diferente, mas a integração foi fácil: os galegos adoram Portugal e os
portugueses. Tinha amizades especiais com Capdevila, Duscher e Molina. O
Molina, aliás, estava sempre a comparar-se com o Vítor Baía quando fazia uma
grande defesa nos treinos. E ele dizia-me que ia fazer de mim o melhor defesa
do mundo e isso confirmou-se em 2004, quando fiz dupla com dois dos grandes:
Carvalho e Couto.
8. He’s my friend, he’s my friend. Continuas amigo do Deco?
E do árbitro Markus Merk, que te expulsou nessa noite?
Não existe dia em que não me recordem esse episódio da minha expulsão no_Dragão
[com_Deco no chão, Jorge Andrade finge dar-lhe um pontapé e é punido com
vermelho pelo alemão]. Como levava as coisas sempre muito descontraídas, esse
lance acabou por prejudicar os meus colegas... e a minha relação com o Deco.
Quando nos encontrámos no estágio da selecção, fui como que repreendido pelo
Scolari a dizer que a culpa tinha sido inteiramente minha. Fiquei com tanta
raiva a esse lance que deixei de falar com Deco e todos os envolvidos. E isso
tudo durou dois anos, até o Deco ir jogar para Espanha. Depois ele foi um dos
pilares na recuperação da minha lesão antes do Mundial-2006. Lesão essa com o
Barcelona de Deco. Ou seja, dois dos dias mais tristes da minha carreira tiveram
o Deco como protagonista. Quanto ao Markus Merk, foi o árbitro que apitou os
jogos mais decisivos da minha vida e em que nada ganhei: FCP-Depor e
Portugal-Grécia na final do Euro-2004. Quando terminou o Europeu, troquei a
minha camisola com o árbitro para marcar o ponto mais alto da sua carreira.
9. Na Juventus encontras pessoas como Ranieri, Del Piero,
Buffon, Trezeguet, Camoranesi. É um balneário de campeões em todos os sentidos?
Depois do_Depor tive a possibilidade de ir para a Juventus, na esperança de
estar totalmente recuperado de qualquer lesão do joelho. A essas estrelas tenho
de acrescentar o Bola de Ouro Nedved. A nossa maior estrela era o_Del Piero.
Enquanto ele treinava os livres directos com um guarda-redes e barreira, os
demais colegas, como eu e o Chiellini, corriam. Só que o Chiellini começava a
espumar da boca e a dizer que era injusto. Eu então dizia-lhe que ficasse
tranquilo, que quando ele parasse de marcar golos também me juntaria aos
protestos do Chiellini. Sobre o Ranieri, era um treinador demasiado
politicamente correcto e... Bom, no dia em que me lesionei pela segunda vez ele
disse-me: “Tranquilo, Jorge, se não conseguires jogar, com o passado que tens,
podes ser um treinador de sucesso. Olha o meu exemplo: não fui jogador de
sucesso e hoje treino a Juventus.” Caricato. Quanto a Camoranesi, é aquele
jogador com gostos alternativos na música e no estilo de vida. Um craque no
futebol e na vida, ao ponto de marcar penáltis na final do Mundial-2006 como
quem toma o café diário.
10. O que se passou no Mundial-2002 para aquele desnorte
emocional?
O Mundial-2002 foi conquistado por uns e jogado por outros. Esta frase resume
muito do que aconteceu, visto que o futebol português pela mão do seleccionador
Antonio Oliveira queria fazer tributo a todos os futebolistas da geração de
ouro do futebol português, o que fez com que muita coisa corresse mal. Fomos
surpreendidos pela forma física dos norte--americanos e subestimámos os
sul-coreanos, que jogavam em casa. Correu tudo mal a nível desportivo, o que
fez com que toda a gente saísse prejudicada, mas para mim foi bom observar tudo
e ver o que não se deve fazer e também para conviver com jogadores de alto
nível e tentar imitá-los no sucesso.
11. Da estreia do Euro-2004 para o segundo jogo com a
Rússia, és o único da defesa que se mantém no 11. Scolari aposta em Miguel,
Carvalho e Nuno Valente, em vez de Paulo Ferreira, Couto e Rui Jorge, sem
esquecer Deco por Rui Costa. Foi uma transição fácil de digerir no balneário
ou...?
O Euro-2004 foi, é e será o evento cultural e desportivo que mais marcou
Portugal. Ter sido protagonista neste sonho foi muito gratificante. Foi como
adquirir o estatuto de herói juntamente com os meus colegas. Dava alegria ver
como o povo português nos seguiu até à final e nos ajudou a ultrapassar os
obstáculos mais difíceis, como o jogo com Espanha ou Inglaterra. Começámos mal
mas depois reagimos e não houve tempo para azias nem egos no balneário. O
objectivo ficou estabelecido desde cedo: servir o povo português da melhor
maneira, fosse com o Joaquim ou o Manel. Fiquei naturalmente contente por ter
feito a caminhada toda mas mais feliz ainda porque ganhámos uma equipa de
guerreiros para muitas batalhas. Eles ainda andam aí, como Cristiano Ronaldo,
Ricardo Carvalho, Tiago... É um orgulho.
in "ionline.pt"
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