sexta-feira, 8 de abril de 2011

O miúdo no ciclo


No momento em que o Benfica dos seis milhões de adeptos se transformou no Benfica dos oito milhões e meio por Roberto, sentiu-se que o ego estava a ultrapassar o seu criador. A criatura, pelo contrário, continuava lá. O Benfica desta época tinha quase tudo para ser o mesmo do ano passado: futebol motivante, de novelo, com ataque até às últimas consequências, romântico até pela forma como não abdicava de somar a alegria dos golos com passes de morte. Mas o ego estava a ultrapassar o criador e a criatura ficou em causa. No início da época, o Benfica sentia e não escondia de ninguém o que pensava: acreditava ser campeão “forever”.

O “pretender” desta vez era o FC Porto, a equipa que ganhou 14 vezes nos últimos 20 anos. Pouco habituado a correr atrás, contratou um treinador jovem e com pouco currículo, que muitos pensaram estar apenas destinado à formatação de lebre de corrida. Era a ele que competiria partir para a linha da frente e desafiar a criatura. Se não resultasse, poderia sempre desistir, que ninguém estranhava ou levaria a mal. Falava-se num ano de transição. De ano de transição para ano de afirmação foi um pulo e rapidamente o humanizaram: começaram a chamar-lhe miúdo. André Villas-Boas respondeu à pressão com nota muito acima da escala. Desafinou e, rebentando com a média, não deu chão para que se instalasse o receio maior, aquele que tratava de anunciar a sedimentação de um novo ciclo de hegemonia do Benfica. Foi André Villas-Boas que agitou a bandeira vermelha. E o Benfica encostou às boxes.

Na pré-época, Jesus vendeu e despediu jogadores em directo, multiplicou-se no auto-elogio, chamou a si todos os louros mesmo quando os parecia querer distribuir pela equipa. Jesus é tão responsável pelo título do ano passado como pela derrota deste ano. Na mesma e exacta medida, criou e destruiu. Não seria possível que um clube com o pior arranque da sua história pudesse ser campeão. O Benfica que termina esta época à procura de cumprir na Europa os seus serviços mínimos, atirou a toalha ao chão ainda perto do bloco de partida, a vociferar contra o mundo, a olhar ao espelho sem se ver nele. Para o FC Porto, o bloco de partida foi a Supertaça quando o adversário ainda estava a sair da conferência de imprensa com o Tottenham. O que se viu nesse jogo da Supertaça marcou e espelhou toda a época. Um FC Porto que esteve sempre por cima, um Benfica que nunca se conseguiu aproximar, uma equipa que apertou os laços de solidariedade e cerrou os dentes, uma outra que elevou a indisciplina e o descontrole emocional à característica do ano. Na equação das principais virtudes e fundamentais pecados, o balanço seria sempre feito entre os dois. Villas-Boas agarrou o balneário que tinha e Jorge Jesus estilhaçou o seu.

A felicidade tem sempre uma janela e uma porta, resta saber por onde vamos sair com ela. O Benfica que saiu pela janela o ano passado, fê-lo na cara do Braga. Sinto, numa enorme felicidade, que esta época ganhámos justamente e que saímos pela porta sem sobressaltos ou receios envergonhados. Agora que a conversa voltou a ser a dois, não vislumbro que o FC Porto seja o tal campeão “forever”, convencidote e arrogante. Pelo contrário. Como não acredito que Jorge Jesus, excelente treinador (digo-o convictamente) que resistiu a três votos de confiança de Luís Filipe Vieira este ano, possa repetir os erros de ego do passado. Caso Jesus se mantenha no clube e caso o Benfica encontre forma de investir fortemente numa grande equipa (e encontra sempre, não encontra?...), temos caso sério para o ano. Já André Villas-Boas termina em ombros, a pisar a pressão sem nunca a ter verdadeiramente sentido. Mesmo recém-chegado da Académica, nunca se pensou trazer a lição tão bem estudada. O que tem muito mais encanto, tão longe está a despedida. Villas-Boas, de pedra e cal.

Há algo que me intriga mas que não me tira o sono. É até um pouco como um efeito placebo que nos dá uma falsa sensação de cabala. Agora que não há confirmação dos sinais de interrupção de um longo ciclo de vitórias do FC Porto, é certa a razão pela qual o clube continua a ganhar adeptos. Mas a pergunta que me intriga e faço é outra: qual a razão que sustenta o facto indesmentível de o Benfica ser mais detestado pelo país agora, quando perde, do que quando ganhava hegemonicamente no passado? A resposta merece uma análise ao ego e à indisciplina dentro e fora dos 90 minutos de jogo, mas estamos seguramente perante uma enorme instituição que trai os seus princípios. É como nas alterações climáticas e na percepção que temos delas. Já não há um Benfica “forever”, mas ainda há quem não saiba.

No início da época não acreditei que um treinador tão jovem e sem currículo pudesse ser campeão. O facto de não ter acreditado num treinador mais novo do que eu foi um sinal do meu envelhecimento. Já lhe disse pessoalmente. Fico-lhe eternamente agradecido por me ter mostrado isso. Interrompi esse ciclo.


Miguel Guedes in "publico.pt"

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