Ao ter ganho, no domingo, a Taça de Portugal, encerrou a carreira de jogador com chave de ouro. Na hora de rever um percurso de altos e baixos, mas recheado de conquistas, Tó Neves partilhou com O JOGO os melhores e os piores momentos.
O que pesou na decisão de terminar a carreira de jogador?
Há quase dez anos que andava a pensar no assunto. Este ano, as coisas tornaram-se mais fáceis. O clique deu-se quando vi o sorteio do campeonato e me detive no último jogo: FC Porto-Oliveirense. São os dois clubes que mais me marcaram, e pensei que era o momento-chave. A isso somei o facto de, em Oliveira de Azeméis, os jogadores estarem a crescer e a minha presença se tornar menos necessária. Fisicamente, sinto que tinha capacidade para mais um ano, mas se calhar não jogaria ao nível que queria.
As suas filhas tiveram influência?
Na continuidade, tiveram sempre. E quando souberam desta decisão ficaram aborrecidas. Mesmo agora, ainda me questionam se tenho a certeza. Elas gostam de me ver jogar. A mais velha, sobretudo, acompanha muito o hóquei, tornou-se adepta fervorosa da Oliveirense, e todas as épocas entra nas conversas de quem sai ou entra na equipa.
Alguma vez imaginou que iria jogar até aos 45 anos?
Julguei sempre que ia parar mais cedo. Com 29 anos, fui convidado para deixar de jogar e ser treinador. Não aceitei. Depois, Livramento disse-me: "Jogas mais quatro anos!" A partir daí fui adiando ano a ano. Quando saí do FC porto para Oliveira de Azeméis, decidi jogar mais um ano para provar que era capaz, e as coisas correram bem. E nunca tinha pensado ser treinador-jogador, mas colocaram-me a questão e encarei-a com um desafio, enquanto todos me diziam que era um erro. Só que sou teimoso e quis experimentar.
Como explica os vários exemplos de longevidade na sua geração?
Dantes era comum ouvir que aos 29 anos começa a fase descendente, mas a minha geração foi diferente na atitude e entrega. As gerações seguintes não tinham tanta paixão, não gostavam tanto do hóquei.
Como escolheu o hóquei?
Sempre fui viciado em desporto. Tive uma experiência no hóquei em campo e voleibol. Se não fosse hoquista, seria provavelmente andebolista, futebolista ou basquetebolista. Mas, na altura, o meu pai sempre quis que fosse futebolista, e tive de o contrariar. Eu achava que o futebol era um universo demasiado vasto para poder ser bom jogador. Tinha de optar por outra modalidade. Quando elegi o hóquei, tinha pouco sucesso, era dos que não entravam, e o meu pai dizia-me: "És titular no banco." Aquilo mexia comigo, e quis provar que era capaz. Foi o meu empenho que me levou até aqui. Tenho de deixar uma palavra ao sr. Mota, o homem que criou o hóquei em Rio Tinto, que me convidou e me ensinou a andar de patins. Foi comovente vê-lo no Dragão Caixa no último jogo do campeonato. Ele disse-me: "Estive no primeiro jogo e tinha de estar no último."
As pessoas vêem-no como um jogador teimoso, rebelde e até conflituoso. Como olha para si e para a forma como os outros o vêem?
A ideia que têm de mim, fui eu que a cultivei. Sou pouco simpático. Os adeptos da minha equipa gostam de mim, mas os adversários vêem-me como um alvo. Em todos os rinques, sou marcado por essa minha forma de ser, mas não estou arrependido.
É uma imagem de marca para esconder fragilidades?
Não, sou genuíno. Não ando aí para agradar a ninguém.
"Durante anos fui insultado"
O ataque à comitiva do FC Porto, em 1998, foi o pior momento da sua carreira?
Foi o único momento em que tive medo na vida. Muito se falou, mas foi indescritível. Tenho-o gravado segundo a segundo. Estávamos a sair do jogo, a bagageira da camioneta abriu e caiu material. Entretanto, uns indivíduos trocaram palavras, saiu o mecânico e um jogador para o ajudar, mas de repente apareceram pessoas com bastões e ferros. Quando demos por ela, metade da comitiva estava fora. Foi um terror, quando pegámos nos stiques houve um recuo. Voltámos para a camioneta, eu fui com os pés de fora...
Durante anos, cada deslocação à Luz, para Filipe Santos, era um pavor. Lisboa não é um sítio onde me sinta bem. Nunca fui maltratado, mas não me sinto seguro.
Como foi acordar um dia com o seu nome envolvido numa acusação de doping?
Num Barcelos-FC Porto, o enfermeiro declarou o que tomavam os jogadores, e falou-se que ali havia uma substância proibida. Fiquei com pena do enfermeiro, porque é uma pessoa maravilhosa e muito competente. Ele não queria criar problemas. Para mim, foi terrível. Eu não precisava de nenhum aditivo que me fizesse andar mais, e a prova está em que joguei até aos 45 anos. Foi terrível, porque durante anos fui insultado. Hoje não me afecta, mas na altura era uma pessoa revoltada.
Qual era a substância?
Houve uma ruptura de "stock" das ampolas bebíveis Sargenor 5, que foram substituídas por Dinamizan, e que tinham heptaminol. Foi o pior momento da minha carreira.
Há doping no hóquei?
Não. Podem acontecer alguns casos de desleixo, por irresponsabilidade. Doping para ter mais rendimento, não.
"Admirei Jordan, mas se fosse futebolista seria o João Moutinho"
O FC Porto foi uma escola como jogador e a Oliveirense, como treinador. Como os recorda, e o que aprendeu como treinador?
A Oliveirense acolheu-me numa fase crítica e lá encontrei pessoas maravilhosas, onde a parte humana se sobrepõe à desportiva. Quando se é treinador, bloqueia-se. Pensamos menos em nós. É uma aprendizagem contínua. Fui-me formando no contacto com outros treinadores, mas o FC Porto ajudou-me, porque fui formado com o ADN de querer ganhar. A minha forma de ser identifica-se com essa forma de estar.
É mais difícil ser jogador ou treinador?
Mil vezes treinador. Ser jogador é ser irresponsável, é preocupar-se só consigo, e tem-se mais prazer.
É genética a capacidade de jogar até aos 45?
O organismo ajuda. Quando faço testes físicos, dizem que devia ser maratonista. Tenho características de grande resistência, mas sem dúvida que comecei desde cedo a cuidar de mim. Sempre fiz pré-épocas sozinho. Ainda hoje, a primeira coisa que meto na mala quando vou de férias são as sapatilhas.
Que desportista mais admira?
Há uns anos, Michael Jordan. Actualmente, se eu fosse futebolista seria João Moutinho. Identifico-me com ele. Mete tudo em campo.
"Se voltasse atrás não ia para o Benfica"
Fala pouco do Benfica...
Estive oito anos na Oliveirense e 28 no FC Porto, e tudo correu bem. No Benfica, estive nove meses, e tudo correu mal. A parte positiva foi ter crescido muito como pessoa.
O que correu mal?
A forma como o FC Porto comunicou a minha saída incendiou as hostes no Benfica. Ilídio Pinto pôs-se do meu lado, considerando os números do Benfica exagerados, e a minha entrada no Benfica foi conflituosa. Não fui bem recebido. Havia ciumeira pelo meu salário e um balneário com muitas estrelas. Era um ambiente sem amizade, sem cumplicidade. Um dia pedi boleia para casa, e o meu colega disse que não dava jeito porque ia pela via rápida.
Quanto ganhava?
Vai morrer comigo. O único que posso divulgar é o meu primeiro contrato como sénior do FC Porto: 17 contos e 500 e mais 50 por cento dos prémios, em 1984/85. Os meus pais obrigaram-me a meter o dinheiro no banco. Felizmente nunca fiz grandes gastos; a compra que fiz foi um Citroën Diane. Não sou ligado a valores materiais. Ando com um carro há dez anos que tem quase 800 mil quilómetros.
O que o levou à Luz?
Foi o fim de um ciclo. Franklim Pais, Alves, Vítor Hugo e Vítor Bruno iam cada um para seu lado e eu, com 26 anos, sentia que estava no apogeu. Do outro lado, tinha Vítor Fortunato, Paulo Almeida, Luís Ferreira e Rui Lopes, com Carlos Dantas a treinador, que me davam a perspectiva de ser profissional.
Por que nunca emigrou?
O hóquei português foi e é o melhor do mundo. Para jogar no estrangeiro, só no Barcelona. Foi hipótese durante dois anos, mas o meu perfil chocava com o do treinador Carlos Figueroa.
Arrepende-se da passagem pelo Benfica?
Se pudesse voltar atrás, não iria para o Benfica, mas não seria a pessoa que sou. Numa idade em que achava que era tudo cor-de-rosa, vi o outro lado do desporto. Hoje, o que menos me chateia é ser apupado, pois quem paga bilhete tem direitos.
O regresso ao FC Porto foi emocional?
A minha sogra ficou entre a vida e a morte e só queria que voltasse tudo ao normal. Na altura pedi a rescisão ao Benfica, não me foi concedida, e quando o Benfica entrou em crise, com uma junta directiva, aproveitei a instabilidade. Só queria que me pagassem o que me deviam dos ordenados em atraso. Rescindi em Julho e assinei com o FC Porto por metade.
"FC Porto é um desafio enormíssimo"
"Nem em sonhos podia ter sido melhor", disse Tó Neves sobre a conquista da Taça que marcou a despedida da Oliveirense, pois vai regressar ao FC Porto, desta vez como treinador, herdando um legado pesado deixado por Franklim Pais, um amigo com quem jogou. Franklim trilhou um rumo histórico, cheio de títulos e finais europeias, e deverá assumir um cargo directivo, cedendo o lugar a Tó já a partir de Agosto. Este vai sem receios, embora consciente de uma herança praticamente inigualável. "Se eu, ou qualquer outro treinador do mundo, nos puséssemos a pensar no que Franklim Pais conquistou, ninguém aceitaria o lugar. Eu gostava de conquistar o mesmo, mas sei que é extremamente difícil. Uma coisa é certa, partir agora para dez títulos seguidos... não estou a ver. Não pensei muito nisso, porque se o fizesse não aceitava. Vou abstrair-me. Pensei no futuro e na continuidade do trabalho do Franklim. É um desafio novo", explicou, sublinhando a importância de ter por perto o decacampeão: "As nossas relações são boas. Ele é ponderado e organizado. A permanência dele facilitava-me a vida". Entre as palavras de determinação, Tó Neves faz uma confidencia: "Treinar o FC Porto sempre foi um desejo. Agora que não vou acumular funções, este é um desafio enormíssimo".
Dos meninos-bonitos das Antas até líder de equipas
Começou a jogar no Sport Clube de Rio Tinto. Depois mudou-se para o FC Porto. Diz que "não queria ir" e que achava que, nas Antas, "só jogavam meninos-bonitos". "No primeiro dia, até com a roupa interior tive cuidado [risos] porque pensava que eram todos uns meninos-bonitos. Quando cheguei vi que as pessoas eram iguais", recorda, garantido, contudo, que passou dificuldades. "Alguns papás levavam os meninos, lanchavam com os treinadores, havia algumas cunhas, e muitas vezes eu sentia que ficava para segundo plano. Por isso, nos suplentes não passava a bola; não queria marcar porque depois perdia a bola e, de baliza aberta, falhava. Fui posto fora várias vezes por rebeldia." Os anos fizeram dele um avançado de primeira, ao ponto de se tornar numa referência. Hoje vasculha o passado e atira: "Nas camadas jovens, sonhava um dia jogar nos seniores do FC Porto, depois sonhava jogar com Cristiano, Vítor Hugo, Vítor Bruno, depois sonhava renovar o contrato, depois ser titular, depois ir à Selecção." Esteve em grandes conquistas, provando ao pai, que não dava muito por ele como hoquista, que estava errado, mas nunca lho disse e até conta: "Não teve autorização para me ver jogar; só o meu tio, que me deu os patins e a moto e sempre acreditou. Só no último ano de juniores é que o meu pai passou a ter permissão. Não me sentia à vontade."
Gestão da Selecção Nacional deixou mágoa
Tó Neves é sorridente, afável e leal. É esta lealdade pelos que o rodeiam que o faz precipitar-se numa lista de agradecimentos. Obrigatória, diz. "José Fernandes, o treinador das camadas jovens. Cristiano Pereira, o modelo que tentei copiar. António Livramento, que foi um génio. Ilídio Pinto, que foi sempre o meu dirigente. Na Oliveirense, António e Aníbal Valente, João Araújo e Pedro Lopes. O médico António Sousa, a quem recorro sempre. E a minha mulher, Manuela. Foi sempre a mais prejudicada e sempre se preocupou comigo." Na hora da despedida, lembrou "um espinho", "o dos Jogos Olímpicos pela falta da medalha", e a Selecção: "A última mágoa que tenho foi a má gestão da selecção. O que eu e muitos outros conquistámos foi dado de mão beijada. Foram substituídos jogadores não pela competências, mas pelo BI." No balanço final, Tó não resiste a recordar um episódio: "Lembrar-me-ei sempre de um jogo da Liga dos Campeões em Novara, em que não joguei, mas estava no banco a rezar. A perder 5-1 ao intervalo, e com o Cristiano fora de si, foi Pinto da Costa que nos deu um moral fora do comum. Saímos transfigurados e virámos o resultado. Pinto da Costa tem um trajecto que fala por si. No mundo inteiro, não há ninguém como ele."
in "ojogo.pt"
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