quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O mundo de Jackson: Tino Asprilla e a panca pela NBA

Reportagem-Maisfutebol: a provocação de um grande ponta-de-lança e as noites em que o colombiano era Michael Jordan 

Faustino Asprilla era o melhor avançado colombiano de sempre. O verbo vem propositadamente no pretérito imperfeito. O presente oferece-nos Radamel Falcao e promete-nos Jackson Martinez. Estará Asprilla de acordo connosco?

«Para ser melhor do que eu, o Jackson vai ter de marcar mais uns golinhos», diz ao Maisfutebol o histórico Tino, glória do Parma e do Newcastle nos anos 90. Os 57 jogos e 20 golos pela seleção da Colômbia dão-lhe toda a razão.

Asprilla prefere, de resto, lançar um desafio a Jackson. «Ele precisa de consolidar o lugar na nossa seleção. Pode fazer história ao lado do Falcao e do James, mas para isso é obrigatório a qualificação para o Mundial do Brasil. Eu estive em dois Mundiais [1994 e 1998]».

Aos 42 anos, Faustino Asprilla continua um provocador. Gargalhadas, questões ao jornalista e mais um repto lançado a Jackson. «Vi o golo de calcanhar que marcou ao Sporting. Um golo desses tem de ser festejado com um mortal, como eu fazia. Fico à espera!» E ri-se.

Antes da despedida, pedimos um comentário a este grande (ex) ponta-de-lança sobre Falcao, Jackson e as possíveis semelhanças entre ambos. Asprilla reage por instinto.

«São muito diferentes, para mim. Só vejo semelhanças na forma como cabeceiam. O Falcao é mais intuitivo, um tigre, um felino. O Jackson é um monstro físico, um avançado poderoso. A Colômbia tem a sorte de poder contar com os dois».

Vasos partidos por culpa de Michael Jordan

O grande ídolo de Jackson Martinez é Michael Jordan. Durante anos a fio, o colombiano partilhou a atenção pelo futebol e o basquetebol. Sonhava ser Air Jordan e voar para os cestos. Partiu vasos e vidros, até que o pai lhe meteu juízo na cabeça.

«Era bom nos dois desportos, mas na Colômbia ninguém melhora a vida se for jogador de basquetebol. O Jackson passava horas a ver jogos do Michael Jordan. Um dia puxei-o e disse-lhe: rapaz, se podes ser um grande futebolista, não sejas um grande basquetebolista».

O conselho paterno foi aceite. Se assim não fosse, é provável que Jackson andasse por outras latitudes. Os adeptos do F.C. Porto têm muito a agradecer ao senhor Orlando Martinez.  

O mundo de Jackson: a fome e os atrasos envergonhados

Reportagem-Maisfutebol: a chegada a Medellín, os berros de Pedro Sarmiento e a oferta louca de Fernando Jimenez

2004, o primeiro ano na carreira profissional de Jackson Martinez. A mudança de Quibdó para Medellín alivia as débeis finanças familiares e dão um novo mundo ao pequeno mundo do ponta-de-lança.

É descoberto e garimpado por Fernando Gimenez num torneio da Universidade de Antioquia. Aceita o convite e assina pelo Independiente. Tem 19 anos e a aprovação paterna. As poupanças dão para a viagem e pouco mais.

É aí que conhece Pedro Sarmiento. O seu primeiro treinador no escalão sénior emociona-se em conversa com o Maisfutebol. «Fui dos poucos a acreditar naquele palito», recorda. «No primeiro jogo foi para o banco e entrou uns minutos. Foi assobiado e insultado pelos hinchas. Não o entendiam. Nem a ele, nem a mim».

As coisas mudaram, porém. «O Jackson superou-se. Melhorou muito, tornou-se um grande profissional. Eu sentia que ele tinha algo de especial e não desisti da aposta», conta o atual treinador do Envigado.

«Como era maltratado nos jogos em casa, esperei para voltá-lo a colocar em campo. Fomos jogar a Bucaramanga e pu-lo a titular. Partiu tudo, jogou de raiva. Nunca mais o desrespeitaram».

«Andava duas horas para um lado e duas para outro»

Os maiores problemas eram, no entanto, de componente física. Esqueçam o Jackson musculado e potente que conhecem. Por aqueles dias, o rapaz era pele e osso. Pedro Sarmiento fez, de resto, uma descoberta preocupante.

«Não se alimentava bem, passava fome em alguns dias. Já era profissional e vivia assim, sem condições. Tive de ser eu a oferecer-lhe a roupa para vestir e o equipamento para jogar: calções, meias, caneleiras e chuteiras. Era pobre, paupérrimo».

A relação extravasava a simples obrigação de treinador para atleta. Pedro Sarmiento foi pai, amigo, confidente. Mesmo que Jackson não falasse. «Era um muro de silêncio e vergonha. A dada altura passou a chegar sempre tarde aos treinos. Gritava com ele e não me respondia».

Jackson não se justificava nem pedia desculpa. Tudo por timidez. «Vim a saber, por outros, que o dinheiro lhe acabara e ele passou a vir a pé para os treinos. Caminha duas horas para um lado e duas para o outro».

«Pressionei-o e ele lá me admitiu que não tinha um cêntimo no bolso. A família estava em dificuldades e por um período não lhe enviou plata. Pu-lo em minha casa e passou a ser mais um do meu agregado», narra Don Pedro Sarmiento.

Dobrar o salário antes da estreia

Em 2004, o salário de Jackson Martinez no Independiente rondava os 400 mil pesos (172 euros). Não dava para nada. Quase nada. Foi no balneário, minutos antes do jogo de estreia, que ficou apalavrado um novo contrato.

É Fernando Jimenez, diretor desportivo do Independiente, quem o conta ao Maisfutebol.

«Estava a falar com o técnico e percebemos que o Jackson não estava bem. Parecia triste. Abeirei-me dele, um minuto antes de subirmos para o relvado e dei-lhe a novidade: amanhã passas a ganhar 800 mil pesos. Sorriu como nunca sorrira antes».

O dirigente recorda-se das críticas iniciais, mas também de deixar os treinadores boquiabertos. «Ao quinto dia de treinos já estavam conquistados: onde o achaste? É craque!. É craque e um enorme profissional. O F.C. Porto acertou em cheio.»  

O mundo de Jackson: «cha cha cha», em nome do pai

Reportagem-Maisfutebol: o orgulho paternal de Orlando Martinez, as histórias de infância, o passo para o Coopebombas

Estranhos dias vive Jackson Martinez. Tudo é sucesso, tudo é felicidade, tudo é perfeição. Estranhos dias, sim. Estranhos pela radical oposição à humildade, quase aviltante, dos primeiros anos em Quibdó.

Oriundo de uma família modesta, sujeita a privações assustadoras, Jackson alimentava-se de sonhos e ilusão. Como qualquer outro menino, afinal. Fugia de casa e corria para a terra enlameada do Bairro Enciso. Jogava com bolas de papel amassadas e sempre descalço.

Uma vez por ano, o mítico Francisco Maturana organizava um torneio na zona: Los Maturanitas. Jackson não falhava um. É provável que fosse o mais magro e o mais sujo. Nada que o atormentasse. A idade propiciava o dom da imortalidade e a eloquência do heroísmo.

Ninguém o tomava por Cha cha cha ainda. A alcunha, certeira, surgiria anos mais tarde, já depois de jogar no Deportivo Enciso e no Coopebombas. Por culpa do pai, Orlando, um ex-futebolista.

É o progenitor, na primeira pessoa, a explicar ao Maisfutebol a origem do cognome.

«Eu jogava no Cóndor de Bogotá (Primeira B) e até tive convites do Santa Fé. Estava na moda um mambo chamado Cha Cha Cha e eu celebrava os meus golos a bailar esse ritmo. Quando o Jackson começou a marcar, os adeptos lembravam que ele era o filho do Orlando Cha Cha Cha. Ficou até hoje.»

Ficou a alcunha e ficaram os golos. Don Orlando fala «orgulhoso» desde Quibdó, noroeste colombiano. «A família reúne-se sempre que o Jackson joga. No final falámos sempre. Depois do golo marcado ao Sporting ele estava doido. Estávamos os dois, aliás».

Pontapear bonecos para ninguém dormir

Da criança «fraquinha e submissa» que andava lá por casa, já pouco resta. Orlando Martinez está estupefacto com a transformação física do filho.

«Tem tudo a ver com superação. Lembro-me das noites em que eu queria dormir e ele andava a pontapear bonecos. A casa pequena e ouvia tudo. Éramos pobres e não havia uma bola boa», recorda o pai do goleador azul e branco.

Não havia dinheiro mas, garante Orlando Martinez, havia educação. «Foi o compromisso que fiz com ele: não podia abandonar a escola. Completou o secundário e só depois se mudou para Medellín. A vida dele mudou radicalmente».

No Coopebombas a sonhar com a Champions

Jackson chegaria à grande metrópole em 2004. Não antes de jogar no Deportivo Coopebombas, um clube pertencente a uma cooperativa de táxis. Foi aí que conheceu o amigo e representante Gustavo Gallo. Foi aí também que passou a sonhar com a Liga dos Campeões.

«Apareceu numa captação. Eu fundei o clube e observava os treinos. Vi aquele moreninho a fintar toda a gente e pensei que estava a ver um milagre», conta o antigo treinador de Jackson ao nosso jornal.

«Uns meses depois prometi-lhe que um dia o veria a jogar a Champions. Aí está ele. Nessa altura era mais nervoso em campo. Levava porrada, reagia e era expulso. Está muito mais sereno».

Entre os colegas, Jackson passou a ser conhecido por El Mudo.

«Tinha 15 anos e não dizia uma palavra. Só se fosse obrigado. Acatava tudo, percebi que ia ser um grande profissional. Não me enganei. Ficámos grandes amigos e sou eu que lhe tomo conta de casa aqui na Colômbia».  

in "maisfutebol.iol.pt"

 

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