sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Yuran. "O FC Porto era uma família. O Benfica era uma... brincadeira"



Mogrovejo, Paz, N''Tsunda, Zwane e Baroni. Por incrível que pareça, é assim que começa a caminhada para o inédito penta do futebol português. São estes cinco jogadores os primeiros a ser contratados pelo FC Porto, cortesia de Marcelo Housemann, empresário argentino com ligações privilegiadas ao técnico inglês Bobby Robson. A ideia dos portistas é competir com o campeão Benfica, mas cada nome é pior que o outro. Só se salva o peruano Baroni, o único que joga, ainda que a espaços (14 jogos, todos a suplente), durante a época. Para salvaguardar este quinteto de fiascos, o FC Porto entra finalmente em cena e contrata jogadores a sério, como Emerson (ex-Belenenses) e Rui Barros (Marselha).

Está fechado o plantel? Não, faltam dois jogadores, que só chegam no último dia do mercado: Serguei Yuran e Vassili Kulkov. Se o FC Porto dá tiros nos pés com o penta de reforços de meia-tigela, o Benfica não lhe fica atrás. Além de trocar o treinador campeão (Toni) por Artur Jorge, este novo timoneiro dispensa os dois russos, que, sem clube, rapidamente se apresentam nas Antas. Para jogar e para ganhar - foram aliás os únicos estrangeiros a sagrar-se campeões nacionais em anos seguidos por equipas diferentes. Foi Yuran quem nos chamou a atenção para esta curiosidade.

Yuran, boa tarde. Como está?

Boa noite, aqui já é noite [em Moscovo, são três horas a mais que em Lisboa]. Estou bem, obrigado.

Quero entrevistá-lo. Posso falar português à vontade?

Claro que sim. Aprendi português há mais de dez anos e pratico-o de vez em quando. Há uns três anos estive aí no Algarve com a minha equipa [Shinnik Yaroslavl]. Olha, perdemos com a Olhanense, por exemplo. E pratiquei o meu português. Com o árbitro. Eheheh...

E agora o que faz?

Sou um treinador desempregado. Mas daqui a 15/20 dias hei-de arranjar uma solução. Há conversações com clubes.

Do que eu quero falar consigo é da carreira de jogador em Portugal. Lembrava-se que neste dia, 10 de Setembro, em 1994, você e o Kulkov se estrearam pelo FC Porto?

Do dia em si, não, mas lembro-me dessa troca e do que ela provocou no futebol português. Afinal não é todos os dias que se sai de um campeão para outro...

De um campeão para outro?

Sim. Nós fomos campeões pelo Benfica em 1994 e fomos campeões pelo FC Porto em 1995. Fomos os primeiros - se não engano, até agora os únicos - jogadores estrangeiros a vencer dois campeonatos nacionais seguidos por clubes diferentes.

Bem visto. Havia diferenças entre o Benfica e o FC Porto?

Ahhhh, claro que sim. O FC Porto era uma família, o Benfica... uma brincadeira. Naqueles tempos o Benfica trocava de treinador constantemente, e até de presidente. No FC Porto ainda hoje isso é impensável. Há um homem-forte que move todo um clube, em luta por títulos e mais títulos. Nunca adormecem à sombra da glória. Têm sempre fome. Por isso o FC Porto foi bicampeão europeu e bicampeão mundial nos últimos 25 anos. Por isso o FC Porto está sempre nos oitavos-de-final da Liga dos Campeões ou da Taça UEFA.

Mas o Benfica foi quem o trouxe para a Europa, certo?

Sim. Cheguei a Lisboa em 1991. No ano anterior ganhei tudo ao serviço do Dínamo Kiev: campeão da URSS, vencedor da Taça da URSS e eleito melhor jogador da URSS. Além disso, marquei cinco golos na Taça das Taças, um deles em Barcelona [1-1]. Isso deu-me projecção e o passo normal era uma transferência para um grande do futebol europeu. Calhou ser o Benfica. O Eriksson insistiu na minha contratação.

Como foram os tempos em Lisboa?

Loucos, eheheh. Agora entendo a raiva de algumas pessoas, mas têm de compreender que eu e o Kulkov, que chegou na mesma época que eu, só que vindo do Spartak Moscovo, viemos de uma realidade completamente diferente. Em Kiev, na URSS, era treino, estágio, treino, estágio. Uma seca, pá! Os jogadores passavam muitas horas juntos, sem nada para fazer. Quando chegámos a Portugal havia um treino de hora e meia e depois era dia livre para o que quiséssemos fazer. Por isso íamos às compras, íamos aos restaurantes, íamos passear, íamos para os bares. Agora entendo que isso é errado, mas aquela realidade entrou em choque com a nossa cultura e deixámo-nos absorver por ela. E foi bom.

Quando iam aos restaurantes ou aos bares, nenhum adepto vos irritou ou incomodou?

Nunca, nunca. Sempre tivemos o respeito de toda a gente. Algumas pessoas até nos ofereciam uns copos. E diziam-se do Benfica. Será que era do Sporting e só nos queriam enganar? Eheheh...

E a ressaca no dia seguinte?

Não havia ressaca nenhuma. Eheheh. Treinávamos normalmente, como se nada fosse. E quando tínhamos algum problema falávamos com o Eriksson [o treinador, sueco, na primeira época de Yuran e Kulkov, em 1991-92].

Então o Yuran nunca teve problemas no Benfica?

Só nunca contei com a compreensão do Mozer. Esse estava sempre a implicar comigo.

Porquê?

Não sei, pergunta-lhe tu a ele. Não devia gostar das pessoas de Leste. Também implicou com o Ivic [treinador jugoslavo no início da época 1992-93, substituído em Dezembro por Toni]. Comigo, às vezes, era duro naquelas bolas divididas. Eu revidava e lá vinham problemas, porque ele não aceitava que lhe tocassem. Quantas vezes o treino foi interrompido para os outros nos separarem? Não há dedos nas mãos para isso. Mas o problema maior nem era esse.

Então?

No FC Porto, o Paulinho Santos e eu também estávamos sempre às turras. Depois, no balneário, os mais velhos, como o João Pinto, juntavam-nos, abraçavam-nos e serenavam os ânimos. Costumavam chamar-nos o Mike Tyson I e o Mike Tyson II. Íamos almoçar em grupo, ali para os lados de Vila do Conde, de onde era natural o Paulinho Santos, ou então ia só almoçar com o Mourinho e tudo ficava resolvido. No Benfica não havia esse sentimento de aproximação depois dos treinos. As brigas entre mim e o Mozer eram constantes e nunca nos acalmavam os ânimos. No fim do treino, cada um ia à sua vida. No dia seguinte eu aparecia descontraído e o Mozer parecia que trazia o problema do dia anterior com ele e aí era pior ainda.

Como se deu a troca Benfica-FC Porto?

Foi tudo muito rápido. O Artur Jorge não contava connosco e tratámos de arranjar um clube, com a ajuda do nosso empresário [Paulo Barbosa]. Tanto eu como o Kulkov nos dávamos muito bem com o Bobby Robson, sobretudo depois do acidente do Cherbakov [avançado russo que ficou tetraplégico depois de um acidente de viação na Avenida da Liberdade], em que nós os três, mais o Mourinho [adjunto de Robson], nos encontrávamos no hospital [S. José, em Lisboa] com regularidade. Ficámos amigos desde então e trocávamos muitas mensagens. Quando soube que o Benfica nos dispensara, o Robson falou com o Pinto da Costa e o negócio fez-se num instante. O Benfica ainda ganhou muito dinheiro com esta dupla transferência [a segunda da história entre os dois clubes, depois de Dito e Rui Águas terem feito o mesmo trajecto, em 1988-89], mas nós é que voltámos a ser campeões.

Alguma recordação especial dessa época?

Ahhhh, claro que é aquele golo na Luz [2 de Outubro de 1994]. Marquei o 1-0 aos 65 minutos, fui expulso por dois amarelos aos 75'' e o Isaías empatou aos 90''. Acabou 1-1, mas marcar aquele golo foi muito bom, libertador. A caminho do balneário, o José Mourinho, naquele estilo que ainda hoje lhe é característico, agarrou-se a mim e gritava para o ar ''és o maior'', ''estás aqui é para marcar'', ''mostraste aos gajos que és bom'', ''deste-lhes uma lição''. Eu só me ria, enquanto os jogadores do Benfica seguiam cabisbaixos, como o treinador [Artur Jorge] e até o presidente [Manuel Damásio]. O Mourinho deixou a porta do balneário aberta e continuou a falar altíssimo, para os do Benfica ouvirem.

Foi bicampeão nacional e depois voltou à Rússia.

Estava cansado e triste. Aconteceram muitas coisas más, como o acidente do Cherbakov [pausa], a morte do Rui Filipe [mais uma pausa]. Bem sei que são coisas que acontecem, mas de certa forma enfraquecem-nos. Por isso quis voltar para casa. E até fui bem-sucedido, no Spartak Moscovo.

Ao lado do Kulkov?

Claro, éramos inseparáveis. E eu pergunto: quantas equipas ganharam os seis jogos da fase de grupos da Liga dos Campeões? O Spartak Moscovo, em 1995-96, num grupo com Blackburn, Légia Varsóvia e Rosenborg. Seis jogos, seis vitórias. Eu marquei quatro golos, um em Blackburn, quando ganhámos 1-0. Foi, aliás, esse o golo que me fez transferir para o Millwall, também da Inglaterra, a meio dessa época.

Deixe-me adivinhar: você e o Kulkov?

Claro que sim, mas então? O Bobby Robson aconselhou-nos ao Mick McCarthy, o treinador do Millwall. O problema é que mal chegámos o Mick saiu para treinar a selecção da República da Irlanda. Com outro treinador, não jogámos muito. Ou mesmo pouco.
 
in "ionline.pt"

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