sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Onze perguntas a... Vítor Baía. "Madjer e Deco foram os mais mágicos que vi num campo de futebol"

No 10.º aniversário do título mundial do FC Porto (8-7 ao Once Caldas em Tóquio), o i faz 11 perguntas ao capitão que não levanta o troféu

Onze perguntas. O iDesporto inicia hoje uma rubrica ao seu estilo. Ai o futebol é de onze? Então a entrevista também o é, de onze... perguntas. Como qualquer onze de eleição, o primeiro nome a sair é o do guarda-redes. Ora bem, hoje festeja-se o décimo aniversário do título mundial do Porto, o último resolvido em Tóquio e o último discutido entre apenas sul-americanos e europeus. Na ocasião, o FCP canta vitória nos penáltis sobre os colombianos do Once Caldas. Obrigado Pedro Emanuel, autor do 8-7.
Quem não assiste ao desempate nem participa nos festejos no relvado é Vítor Baía. Ele mesmo, himself, lui-même, o capitão. Como resultado, não levanta o caneco nem aparece na fotografia. Então porquê? Calma, essa será uma das onze perguntas. Pontual, Baía lá aparece no hall do Vila Nova Galé em Alcântara às 11h30. Passa por um, por dois, por três empregados do hotel e cumprimenta-os com um sorriso enquanto avança como se fosse um extremo até nós. Esboça outro sorriso para o i, senta-se à mesa, de frente para o sol, pede um café e cá vai disto. Para ele, tanto Futebol Clube de Porto como Porto diz-se fêquêpê. É um homem do Norte, carago!

1. Lembras-te da tua estreia pelo FCP? 
Claro que sim: Vitória-Porto [1-1 por Sousa 55’ e Germano 81’]. O treinador era oQuinito. Naquela época, o titular era o Mlynarczyk, que se lesionou num treino de manhã [Baía aponta para o ombro]. Bom, os dirigentes telefonaram então para o Zé Beto. Repara, na altura não havia telemóveis, era telefonar para casa e, pormenor, oZé estava suspenso das actividades pelo fêquêpê. Ninguém atendeu do lado de lá, o Zé deve ter ido à sua vida naquele fim-de-semana, não sei. O que sei é isto: só havia um guarda-redes naquele estágio e era eu, com apenas 18 anos. Lá fui para o campo, a um domingo à tarde, como se impunha. Nos primeiros cinco minutos, aquilo fez-me confusão: os seniores mexem melhor a bola que os juniores e jogam a uma velocidade supersónica. Não estava acostumado àquela realidade. Passado aquele período experimental, já saía aos cruzamentos fora da pequena área, já me atirava aos pés do adversários, já estava bem.

2. Já agora, como entraste no FCP? 
Beeem, estamos a recuar cada vez mais [largo sorriso, um gesto de ok e siga a dança]. Essa história também é curiosa. Antes de mais, vou dizer-te uma coisa: devo ser o único guarda-redes na história do fêquêpê que só foi titular no primeiro (iniciados 83-84), e no último ano (juniores 87-88). Nesse intervalo, fui sempre suplente. Primeiro do Bizarro, depois do Best. Lembras-te do Best?

3. Aquele do Salgueiros? [bolas, já queimei uma pergunta] 
Esse [e bate com as mãos uma na outra]! Ele já usava bigode aos 15, 16 anos.Quem é que tem bigode com essa idade? Que figura, cinco estrelas. Bom, vamos aos factos: fui visto por um olheiro do fêquêpê num jogo pelaAssociação Académica do Leça.Nessa tarde, não tive trabalho nenhum enquanto o guarda-redes da outra equipa fez a exibição da vida dele. Acaba o jogo e o tal olheiro vira-se para o nosso treinador e diz-lhe que quer o avançado.Quem era? Domingos Paciência, conheces? [mais um sorriso] E depois perguntou-lhe quem era o guarda-redes da outra equipa. O nosso treinador sugeriu que me levasse a mim. O olheiro disse que não, queria o outro. O nosso treinador repetiu a sua ideia e lá levou a melhor: o Domingos e eu no fêquêpê.

4. E o outro guarda-redes? 
Esse foi para a Associação Académica do Leça. Logo ali, na hora [estala os dedos como negócio fechado]. Quando chegamos às Antas, eu e o Domingos ficámos de boca aberta. Estávamos no fêquêpê! [e sacode os dedos como quem diz, ‘já viste a nossa sorte?’] À nossa espera, o saudoso mister Costa Soares [treinador dos jovens desde 1974 até 2007]. Olhou para nós e decidiu de uma assentada: ‘tu’, para o Domingos, ‘vais começar a comer ali num restaurante manhoso para ganhar corpo’ e ‘tu’, para mim, ‘o teu paí é alto?’ Vê bem como funcionava a velha escolha. ‘O teu pai é alto?’ Respondi-lhe 1,80-e-tal. Ele tira-me as medidas e atira um ‘vais chegar lá’.

5. E chegaste? 
Aos 14 anos, não chegava à barra.Até me lembro de um jogo em Leixões [Baía estende a mão e entorta a cabeça] em que cumprimentei o Bizarro a olhar para cima. ‘Tás a ver? Acabei a época e fui de férias grandes, aquelas de dois/três meses no Verão. Quando voltei, ninguém me reconhecia.Dei cá um salto. Até já era mais alto que os outros guarda-redes daquele escalão [Baía mede 1,85 m]. Aos 16 anos, o Bizarro não quer renovar, fala-se do Benfica. Eu vou à baliza e o presidente [Pinto da Costa] vai ver um jogo meu atrás da baliza. Quando termina o jogo, diz às pessoas competentes para assinar comigo e abre a porta ao Bizarro.Ele vai para oBenfica e eu assino um contrato profissional aos 16 anos. Inédito.

6. Antes da transferência, ias às Antas? 
Vais mais atrás ainda?! Deixa cá ver, a minha primeira memória é um jogo com oDínamo Zagreb: 1-0 do Gomes no último minuto. Entre 1981 e 1983, vê lá nos arquivos [28 de Setembro de 1982, 2.ª mão da 1.ª primeira eliminatória da Taça das Taças].Tínhamos perdido lá 2-1. Foi cá uma sensação, o estádio tremia por todos os lados. Lembro-me também de um 7-1 ao Belenenses, em Agosto, na abertura do campeonato. Saí de lá maravilhado com o Madjer.Ele e oDeco foram os mais mágicos que vi ao vivo. O Madjer era uma coisa, pffffff [acompanhado de uma careta]. Nesse jogo fez coisas impossíveis e até marcou um golo de calcanhar. Nessa noite, outro pormenor: havia gruas dentro do estádio.Estavam a rebaixar o relvado das Antas. Uma memória, outra, é um 4-2 aoCovilhã, na última jornada.Estávamos a perder 2-1 ao intervalo e só a vitória é que nos garantia o título de campeão nacional. Isso foi em 1986 e esse foi o título que nos permitiu chegar à Taça dos Campeões, conquistada em 1987.

7. Nesse ano o FCP também conquista a Taça Intercontinental. Viste esse jogo? 
Então não vi?! Pus despertador, acordei a meio da noite e fiquei de boca aberta a olhar para a televisão.Como é que estava a nevar?! Como, se estava sol no dia anterior durante o treino?!Liguei a televisão e um campo branco com uma bola colorida?! Depois foi aguentar e aguentar até à vitória. É a história do fêquêpê, de superação e glória. Notava-se que os jogadores estavam a passar por momentos difíceis, com o frio e o gelo. Notava-se que choravam enquanto jogavam.

8. Lembro-me de um episódio em que choraste num Barça-Atlético (5-4). 
[Olha para o sol como se estivesse a ter um flashback] Essas lágrimas foram de alívio.Não fiz um bom jogo nessa noite: estava 3-0 ao intervalo e ainda sofri um quarto golo do Pantic na segunda parte. Estava de rastos. Pelo resultado, pela minha exibição. Felizmente ganhámos e passámos. Aliás, ganhámos essa Taça do Rei: 3-2 ao Betis, com dois golos do Luís [Figo], em pleno Santiago Bernabéu. É o jogo em que o hino do Barcelona toca.Repito-me: em pleno Bernabéu. Inédito e eu estava lá. Uma honra.

Outra honra é a Intercontinental, imagino... [isto não conta como pergunta] 
Nem me digas nada.Foi um jogo terrível porque apanhei o maior susto da minha vida. Voámos três dias antes do jogo e tomámos comprimidos para dormir no avião mas eu qual quê! Não consegui dormir nem aí nem à noite. De dia, eram os treinos e só tinha tempo para cochilar. No jogo até nem tive trabalho por aí além. Aliás, podíamos ter resolvido o jogo em 90 minutos mas o McCarthy atirou duas bolas ao poste e ainda lhe anularam dois golos. Às tantas, no prolongamento do jogo, sinto um peso no meu peito.Aquilo bate-me na cabeça, até porque o Féher estava bem vivo na memória [Janeiro-2004], e opto por deitar-me de imediato para o jogo parar.Quando o médico chega ao pé de mim, mete-me a mão na garganta e traça logo o diagnóstico. Tinha de sair. ‘Mas saio o quê!’ disse-lhe. E ele a responder-me ‘tem de ser, tem de ser, tens de ir para o hospital’. Lá fui. Um médico japonês também não conseguia perceber até que expliquei a minha vida nas últimas 72 horas. Fez-se luz e ele explicou-me por a mais b que estava assim por falta de sono, stress, ansiedade, etc, etc. Depois quando me juntei à equipa, todos a meterem-se comigo ‘borraste-te todo foi o que foi!’. Eu só me ria. Borrado, eu?!

9. Nunca? 
Só por estar assim [e aproxima o indicador ao polegar] de não jogar o Euro-2000. Passei parte da época lesionado e o Humberto [seleccionador] dissera-me que tinha de jogar uma vez. Bastava-me uma vez para ser convocado. Há a final da Taça de Portugal, com oSporting campeão do Inácio, e eu ainda não estou bem. Acaba 1-1, com o Hilário a fazer uma super-exibição, e há finalíssima. Beeem, foi uma alegria porque isso dava-me tempo.Disse ao FernandoSantos que podia jogar, que estava em condições de o fazer. Entrei no Jamor com calças de fato de treino. ‘Tás a ver, com sol e calor?! O Rodolfo Moura tinha-me enfaixado todo. Ganhámos 2-0 e eu só tive uma saída difícil, perto do fim, numa bola dividida com oSchmeichel, que apareceu ali feito maluco. Fui aoEuro-2000 com esse jogo. Mas atenção, tive de treinar todos os dias, mesmo lá, sem folgas.

10. Há mais para além de 30 títulos e 80 internacionalizações? 
Tanta coisa. Fui campeão nacional a jogar em 3-3-4 no Dragão e 3-4-3 na Luz e em Alvalade. Só dá para consumo interno, atenção [e ri-se outra vez]. Na Champions, é outra história e até perdemos com o Artmedia. Mas em casa foi remédio santo. É na era Co Adriaanse, com quem tenho uma história engraçada. Em 2005-06, perco a titularidade na Amadora [2-1 para o Estrela], em Janeiro. Entra o Helton. Só volto à baliza com a lesão do Helton. Nas meias-finais da Taça de Portugal, com o Sporting, em Março, ganhamos nos penáltis [Baía defende o primeiro, de Moutinho].

11. Não picaste o Ricardo num desses penáltis? (pronto, já fui: 11 perguntas) 
Há momentos em que fazes coisas que não te orgulhas, que não são exemplares. Quer dizer, estás ali para ganhar e fazes tudo ao teu alcance para chegar ao tal objectivo mas... Nesse instante, reconheço que não estive bem, nem à minha altura. É daquelas coisas de que não gosto de as ver a posteriori.

Continua se faz favor. Estavas a falar de Helton e Co Adriaanse em 2005-06. 
No jogo seguinte, o mister chama-me e diz-me que o Helton, já recuperado da lesão, vai voltar, que é o número um dele. Eu digo-lhe que é injusto, que o futebol é feito de oportunidade e que eu agarrara a minha, da mesma forma que o Helton fizera o mesmo quando eu fui para o banco na sequência do tal 2-1 com o Estrela. Ele mantém a sua decisão e então digo-lhe: ‘Não gosto da sua decisão e acho-a injusta mas vou fazer tudo ao meu alcance para levá-lo ao título de campeão nacional.’ Bem, o Wil Coort [treinador de guarda-redes] veio dizer-me que o Co Adriaanse tinha ficado admirado com a minha atitude, que nunca tinha visto uma coisa assim nem esperava isso de ninguém. No final da época, quando fomos campeões, o Co Adriaanse aproximou-se de mim, deu-me um abraço e segredou-me ‘obrigado’.


Obrigado nós.

in "ionline.pt"

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