sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Onze perguntas a... Abdel Ghany. "No Porto havia o Couto. Sim, passar pelo Couto foi das coisas mais difíceis que fiz"

Uma viagem aos anos 80 através do egípcio do Beira-Mar, entre guarda- -chuvas em Aveiro, bacalhau na Figueira da Foz e alguns golos emblemáticos, como aquele à Holanda no Mundial-90 ou o outro ao Baía na final da Taça

O plano está traçado e não é possível errar. O plano é entrevistar Jorge Costa, um dos dois seleccionadores portugueses na Taça das Nações Africanas - o outro é Rui Águas (Cabo Verde). A ligação daqui para o Gabão não está fácil. Apercebemo-nos depois de que falta um número. Resgatado o algarismo, tentamos uma e outra vez. Agora já com Jorge Costa na Guiné-Equatorial, onde amanhã se inicia a 30.a edição da prova. Mas não há jeito, do outro lado não nos chega a voz de Jorge Costa, capitão do FC Porto na hora de levantar o último título internacional (Taça Intercontinental-2004).

Posto isto, temos de abrir o leque de opções e atacar o plano B. Qual bê qual carapuça, o nosso homem começa pela letra A. Chama-se Abdel Ghany. Ou melhor, Magdi Abdel Ghany Sayed Ahmed. O seu português é quase perfeito, o seu timbre entra-nos pelo ouvido com tal clareza que até parece que estamos a falar cara a cara, apenas separados por um sofá. Quer dizer, nós estamos sentados num sofá. Ele é que não sabemos.

Para quem não sabe, Abdel Ghany é uma espécie de herói. Egípcio do Cairo, aterra em Aveiro aos 29 anos de idade, via Al Ahly, o clube da sua vida desde 1965 (sim, ele entra nas escolinhas aos seis) até 1988. É ali que se faz homem. Que se faz médio ofensivo com uma qualidade ímpar. Os números não o desmentem: 57 golos em 386 jogos, sem esquecer a chamada para a selecção egípcia, onde participa nos Jogos Olímpicos-84, em Los Angeles. Dois anos depois é campeão africano. Em casa, no Egipto, no Cairo. É aqui que queremos chegar: Abdel Ghany tem uma forte ligação com a Taça das Nações Africanas. Nada melhor, portanto, que incomodá-lo com 11 perguntas. A ocasião está a pedir, não está? (Só para esclarecer, esta pergunta não faz parte das 11).

1. Boa tarde, Abdel Ghany. O seu nome faz parte da história de Portugal. Tem noção disso?
Boa tarde, boa tarde [com uma alegria contagiante]. Sei que sou muito acarinhado aí e sinto saudades, imensas saudades, de vos visitar. Deixei muitos amigos e quero revê-los. Daqui a uns meses, quem sabe? A verdade é que os quatro anos em Aveiro foram do melhor que vivi em toda a vida. E não falo só do plano profissional. Tinha uma bela vida aí, tranquila e cheia de prazeres.

2. Então fale lá de um desses prazeres...
Um só? Não consigo. É pouco, pouquíssimo. Então eu estava em Aveiro, junto ao mar. Havia toda uma costa para aproveitar. Tanto para cima como para baixo. É uma fila de pratos deliciosos, de refeições animadas. O arroz de marisco, o bacalhau na Figueira, os camarões grelhados, o tamboril, o peixe-espada... Pelo meio treinava com os meus amigos do Beira-Mar. E depois jogava contra os mais grandes.

3. Então, quem são eles?
Um só? Não consigo. Olhe, só lhe digo que chegámos à final da Taça de Portugal em 1991 e eu marquei um golo ao Vítor Baía. Ao Vítor Baía! [Obrigado por me furar os tímpanos.] Quer dizer, ele era um guarda--redes extraordinário, daqueles difíceis de bater. Porque sim, porque era completo e porque, é justo reconhecê-lo, tinha uma defesa seguríssima à sua frente. Mesmo assim, nós fomos lá à frente e marcámos. E fui eu. Que alegria imensa marcar ao Porto, numa final da Taça e num estádio tão bonito como o Jamor! Aquele dia nunca esquecerei.

4. Desculpe interrompê-lo mas o Beira-Mar perdeu essa final, não perdeu?
Sim, é verdade, perdemos 3-1, mas só no prolongamento. Demos luta e fomos grandes durante o tempo todo. Eles foram mais fortes, simplesmente isso. Mas o Jamor será sempre uma recordação bem-vinda. Um golo ao Vítor Baía, uffff. Mal o marquei fui a correr para a bancadas dos adeptos do Beira-Mar, que já lá estavam desde o raiar do dia. Foi um dia intenso, de emoções mistas. Perdemos, sim, mas virámos heróis. De Aveiro e também de Portugal. Afinal não é todos os dias que se chega a uma final da Taça.

5. Pois não. O Beira-Mar só lá voltou uma vez, em 1999. Lembra-se?
Se me lembro? Amigo, voei de propósito daqui para Portugal e vi o 1-0 do Ricardo Sousa ao Campomaiorense, outra vez no Jamor. Eu sabia que aquele estádio me iria dar uma boa notícia. Só chegou ligeiramente mais tarde do que sonhava, mas chegou. E foi cá uma festa... De arromba! Jantei com os campeões e senti-me parte deles. Percebi a sua alegria e juntei-me a eles. E olhe que já ganhei uma CAN (Taça das Nações Africanas).

6. Ainda bem que fala, porque já me tinha esquecido totalmente disso. Ganhou quando?
Em 1986, no ano do Mundial do México. Até te posso dizer que ganhámos a Marrocos [adversário que elimina Portugal na fase de grupos, por 3-1] no caminho para a glória. Foi outra epopeia grandiosa. Vivida com outra intensidade, claro. Afinal jogávamos em casa e o conforto do lar é outro se fortemente empurrados pelo público. Cada jogo era cá uma adrenalina. As bancadas cheias, cheias, cheias, como nunca vi. Perdemos o primeiro jogo [Senegal, 1-0] e soubemos dar a volta. Somos bravos, fortes. Os mais competentes do nosso continente. E atenção, havia uma série de selecções notáveis, como os Camarões, do Roger Milla, com quem fomos à final.

7. E como correu essa final?
Zero-zero no final dos 90 minutos. E zero-zero aos 120. Nos penáltis ganhámos 6-5. Eu marquei o meu.

8. Como de costume. Não é o Abdel Ghany quem marca aquele à Holanda em 1990?
Woooow, é isso mesmo. Outro dia inesquecível. Nesse caso até foi à noite [mete uma gargalhada pelo meio como bónus]. Isso foi em Palermo, na fase de grupos do Mundial-90. Quando nos calhou a Holanda, campeã europeia, Irlanda, a surpresa do Euro-88 e a Inglaterra, todos nos vaticinaram um Mundial de má memória. E não é que demos a volta com talento e até golos?! Esse em particular deu-me gozo. Num Mundial?! Demais. Eu concentrei-me muito, muito, muito, o Van Breukelen esticou--se muito, muito, muito. Mas a minha concentração ganhou à do Van Breukelen. Se vires bem, a bola entrou muito, muito, muito junto à rede lateral. Era impossível ele defender. Foi um golaço. De penálti mas golaço. Empatámos 1-1. Ainda roubámos pontos à Irlanda [0-0] e depois só perdemos com a Inglaterra [1-0]. Saímos desse Mundial com a sensação de dever cumprido. Um pouco à imagem dos Jogos Olímpicos-84: passámos a fase de grupos e só fomos eliminados nos quartos pela França, nada mais nada menos que a futura campeã.

9. E conte-me lá histórias do Beira-Mar. Tem noção dos primeiros dias?
Claro que sim. Mesmo que quisesse, e não o queria, não conseguia passar despercebido. As pessoas vinham ter comigo com um sorriso enorme. Devo-lhes tudo. Fui tão bem recebido... A nível futebolístico, e assim de repente, lembro-me de ter marcado na estreia [1-0 ao Estrela]. Depois marquei o 1-0 ao Espinho e mais dois ao Portimonense [2-0]. Sempre em casa. Éramos muito fortes em casa. Aquilo enchia de gente e levava-nos para outro patamar. Claro que havia o factor campo.

10. O de jogar em casa?
Os Invernos daquela altura eram muito chuvosos. Pelo menos em Aveiro. Aliás, era até engraçado sair do balneário para o aquecimento ou para o jogo e ficarmos com a visão inundada de guarda-chuvas. Não havia ninguém sem guarda-chuva. O vendedor dos guarda-chuvas era um sortudo, digo-te. Bom, com tanta chuva, o relvado ficava lamacento e nós optávamos, e bem, por treinar no pelado. Uma semana inteira aí. Quando chegava a hora do jogo entrávamos no relvado como se fosse a nossa primeira vez. E fazíamos coisas magníficas. Como ganhar ao Sporting de Figo e Balakov [1-0 em Setembro de 1992].


11. Ah, eram esses os outros grandes para além de Vítor Baía?

Sim, mas há mais, muito mais. Olha, no Beira-Mar temos o Redondo e o Dinis, meus grandes amigos de Aveiro. No Benfica havia Paulo Sousa e Rui Costa, além de Paneira, Magnusson, Ricardo [Gomes], Valdo. No Porto havia o Couto [silêncio]. Sim, passar pelo Couto foi das coisas mais difíceis que fiz.

in "ionline.pt"

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