terça-feira, 13 de setembro de 2011

Mlynarczyk. "Raramente entendia o que se dizia mas estava sempre a rir"

O guarda-redes polaco ganhou a Taça dos Campeões-87 num clube familiar e o i entrevistou-o com a ajuda de um intérprete, a filha


O tempo da Cortina de Ferro já lá vai. Até aos anos 80, os jogadores de futebol estavam expressamente proibidos de sair do seu país para o lado de lá, salvo raras excepções. Na Polónia, por exemplo, o avançado Zbigniew Boniek faz um brilhante Mundial-82 e consegue sair do Widzew Lodz para a Juventus de Itália. Dois anos mais tarde, outro polaco liberta-se das amarras do Widzew Lodz e arrepia caminho. Destino: Bastia (França). Em Janeiro de 1986, aterra nas Antas para se impôr como o melhor guarda-redes estrangeiro na história do clube.

Mal chega, estreia-se na Luz a 4 de Janeiro. Nesse jogo, não há golos para ninguém, embora o árbitro Raul Nazaré anule bem um golo a Gomes por mão de Frasco e o mesmo Gomes falhe um penálti, para defesa de Bento. Na memória dos adeptos, a elegância de Mlynarczyk, sobretudo nos lançamentos para o ataque. Com a mão, a bola passa invariavelmente o meio-campo. Com os pés, a bola vai de baliza a baliza.

É a sua imagem de marca, ou não fosse assim que o FC Porto conquiste o campeonato desse ano, com um passe de Mlynarczyk para uma correria-golo de Futre em Setúbal (1-0) no mesmo dia em que o Sporting surpreende o Benfica na Luz (2-1). À penúltima jornada, o FC Porto ultrapassa o Benfica e sela o título de campeão nacional no derradeiro dia com o 4-2 ao Sp. Covilhã. No ano seguinte, já se sabe: Mlynarczyk campeão europeu. Na véspera do arranque de mais uma campanha portista na Champions, ainda por cima com uma equipa da ex-Cortina de Ferro (Shakhtar Donetsk), o i entrevista Mlynarczyk. O que só é possível com a ajuda da filha Marzena. "Eu entendo o teu português mas já não consigo expressar-me correctamente na tua língua. Por isso, liga-me daqui a duas horas quando está cá a minha filha. Ela fala bem português e faz de intérprete". Para quem não se expressa correctamente, Mlynarczyk até nem esteve nada mal, não senhor! Ligamos-lhe duas horas depois e Mlynarczyk passa o telefone à filha que tem a paciência de fazer a ponte entre o i e o pai. Durante 49 minutos, a conversa flui. Primeiro em português, depois em polaco, continua em polaco (voz de fundo) e novamente em português. Levante-se a cortina, vai começar a Liga dos Campeões.



O FC Porto foi campeão europeu em 1987 com o Mlynarczyk na baliza. Mas como é chega ao Porto?

Jogava na 1.ª divisão francesa, pelo Bastia. Um belo dia, um empresário chamado Lucídio Ribeiro [que também leva Madjer de França para o FCP, só que no ano anterior, em 1985] apresentou-me uma proposta séria do FC Porto. O desafio agradou-me e aceitei quase de imediato. Naquela altura, o FC Porto já era uma equipa de respeito como finalista vencido da Taça das Taças-84, com a Juventus do Boniek.

No Porto, foi chegar, ver e vencer. Lembra-se da estreia?

Sim, com o Benfica. Na Luz. Foi zero a zero e o que mais me impressionou foi o estádio cheio. Quer dizer, 120 mil pessoas juntas a ver um jogo de futebol era coisa que não se via muito por aí. Tive a sorte de participar nesse jogo. O Benfica era fortíssimo mas nós é que fomos campeões nacionais.

E europeus, no ano seguinte.

Esse ano foi fantástico. Começámos a perceber que podíamos ser campeões europeus nos quartos-de-final com o Bröndby.

Na baliza deles, o Schmeichel.

Sim, mas ainda era muito jovem e sem nome no futebol europeu. Lembro-me de termos empatado lá, com um golo do Juary, e de pensarmos ''bem, agora só faltam dois jogos para chegarmos à final e três para levantar a taça''.

Mas saiu-vos o Dínamo Kiev nas meias-finais.

Não havia muito onde escolher. Ou eles ou o Bayern ou o Real Madrid. E o Dínamo era uma equipa formidável. No papel, melhor que a do FC Porto. O treinador era Valeri Lobanovsky, um nome incontornável na história do futebol mundial. E a equipa deles era a selecção russa do Mundial do México-86 e que chegaria à final do Euro-88. Ganhámos os dois jogos, ambos por 2-1.

Na final, o Bayern.

Outro colosso. Eram os favoritos.

Ainda por cima, o FC Porto perdeu os capitães Lima Pereira e Gomes nas vésperas da final.

Exactamente. Mas atenção que eles também não jogaram com o capitão Augenthaler, expulso em Madrid. Mas o FC Porto era mais que um clube, era uma família. Muito unida. Nunca senti nada assim. Era um clube com jogadores tão próximos uns dos outros. Até arrepia, só de pensar. Mérito para o presidente Pinto da Costa. Nos treinos, todos se portavam bem mas bastava chegar ao balneário para começar a brincadeira. Aí, eu entendia a mística e a verdadeira amizade entre nós. E quem te diz isso sou eu, que nunca cheguei a falar muito bem português. Portanto, às vezes, nem entendia as piadas em português mas estávamos sempre a rir. E já se sabe que a alegria contagia.

Okay, mas o FC Porto estava a perder ao intervalo e com um golo de um lançamento lateral.

Nem me lembre isso. Quando o árbitro apitou para o intervalo, caminhei para o balneário cheio de dúvidas e angústia. Como era possível termos sofrido um golo assim, de um lançamento lateral? Imperdoável. Nem nos treinos. Felizmente, demos a volta na segunda parte. Se não fosse isso, não sei como me aguentaria. Seria muito doloroso não tocar na taça com um erro desses.

Mas chegou a tocar na taça?

Foi difícil, lá isso foi. O João Pinto deu não sei quantas voltas ao estádio com ela na mão, na cabeça e sei lá mais onde. Mas foi uma festa grandiosa. Se já éramos alegres, imagine depois desta conquista inédita.

Meio ano depois, levantou a Taça Intercontinental.

Bem, unca senti tanto frio como nesse jogo e olha que eu joguei anos e anos na Polónia, com neve e gelo. Mas nesse dia em Tóquio o tempo estava insuportavelmente frio. Cada vez que ia ao chão para agarrar uma bola, a relva molhada e gelada, juntamente com flocos de neve, entranhava-se no meu corpo, não sei muito bem como. E era cá um incómodo.

É esse o seu momento inesquecível no FC Porto?

No FCP, não há um só momento inesquecível. Há vários. Foi muita coisa junta. Depois da Taça Internacional, ainda ganhámos a Supertaça Europeia. E ao Ajax, que tinha mais nome que nós. Esse Ajax era treinado por Cruijff e o adjunto era um tal Van Gaal. Ganhámos 1-0 em Amesterdão naquele que terá sido uma das melhores exibições do Rui Barros. Ele correu mais que todos os outros 21 jogadores em campo. Correu, correu e marcou-nos o golo da vitória.

...

Queres outro momento inesquecível? O meu penálti ao Boavista

A sério?

Sim, para a Taça de Portugal. Empatámos 2-2 nas Antas e depois 0-0 no Bessa. Nos penáltis, o Ivic escolheu-me como quinto marcador. Fiz o 5-4 e depois ainda defendi o remate de um jogador deles [Marcos António].

Bom, está tudo. Obrigado

De nada, obrigado pela vossa atenção, pela vossa memória. Aproveito para mandar um grande abraço ao Pinto da Costa. Foi ele que tornou estas memórias possíveis. E um abraço a todos os jogadores do FC Porto. E a todos os adeptos. E a todos aqueles que conheci na minha passagem por aí. A todos aqueles que me deram força quando me lesionei [facto aproveitado para se dar a passagem de testemunho para Vítor Baía]. E, é o último agradecimento, prometo, a todos aqueles que me mostraram o bem que se come e vive em Portugal. É um país magnífico. Parabéns.



in "ionline.pt"

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