sábado, 10 de janeiro de 2015

Onze perguntas a... Branco."Eram treinos divertidos: eu a bater livres de um lado, o Geraldão do outro"


Com uma perna mais curta que outra, o lateral- -esquerdo brasileiro lembra alguns golos da carreira e ainda a recusa de uma palmilha, a vitória das velhinhas do seu prédio no Rio de Janeiro e a falta cavada com a Holanda no glorioso Mundial-94

Cláudio Vaz Ibrahim Leal. Dito assim ninguém o conhece. Se dissermos Branco, aí o caso muda de figura. É a sua alcunha, o nome pelo qual se torna famoso em todo o mundo, sobretudo depois de ganhar dois títulos pela selecção brasileira (Copa América-89 e Mundial-94). E mais dois no Porto (Campeonato-1990 e Supertaça-1991). Contratado ao Brescia, o lateral-esquerdo chega às Antas no Verão de 1988 e é lançado por Quinito, em Guimarães, no mesmo dia que Vítor Baía. Curiosamente (ou não), os dois têm estátuas no museu como parte do onze ideal na centenária história do clube, ao lado de João Pinto, Aloísio, Ricardo Carvalho, André, Madjer, Deco, Gomes, Hulk e Futre. Se apanhámos Vítor Baía há duas semanas e Jorge Andrade há uma, agora é a vez de Branco. Depois de um guarda-redes e um central, é a vez de um lateral. Todos dos anos 90, todos com um passado portista. Que isto não seja visto como decreto-lei, é apenas coincidência. Branco mais branco não há.

1. Cláudio Vaz Ibrahim Leal. O Branco surge de onde?
Olha, comecei a jogar nas ruas de Bagé, mais precisamente na Rua Valdemar Machado. Como Bagé pertence ao estado do Rio Grande do Sul, fazia constantemente um frio danado. Por isso tinha de entrar num pavilhão, né? [risos] Aí entrei num clube chamado Aimoré, de futebol de salão. Na minha equipa de cinco, tinha eu e mais quatro negros. Ainda hoje todo o mundo me trata por Branco quando me vê na rua. Estou a falar dos adeptos, claro. Lá em casa é diferente. Então, Rui, sou duas pessoas: o Cláudio e o Branco.

2. Ambos com um pontapé canhão?
Aí é mais Branco, mas o Cláudio também é forte nesse tipo de lances, eheheh.

3. É verdade que tem uma perna mais curta que a outra?
É, isso sim. Sou como o Roberto Dinamite, por exemplo. Uma vez, o médico da selecção brasileira, o Lídio [Toledo], quis dar-me uma palmilha e eu recusei. Imagina que o meu pontapé enfraquecia ou que o meu jogo já não seria mais o mesmo? Não dava para aceitar. Então joguei sempre com um pequeno desnível. Além do Roberto Dinamite, também há o Garrincha. Homens assim chegam longe, eheheheheh.

4. Por falar nisso, como é o teu trajecto para sair de Bagé para o Rio de Janeiro?
Já te falei do Aimoré, futebol de salão. Daí fui para as escolinhas do Bagé, um dos dois clubes profissionais da cidade. O outro é o Guarany, onde cheguei a jogar nos juniores e até na equipa principal, como no Internacional. Num desses poucos jogos, um olheiro do Fluminense viu-me e interessou-se por mim. Claro que convém nunca esquecer a minha trajectória na selecção gaúcha de juniores. Na altura havia esses torneios estaduais de selecções. Se alguém se desse bem, era meio caminho andado para o sucesso. E nós fomos campeões brasileiros em 1981. Então, entre a selecção gaúcha e o Guarany, o Fluminense encontrou-me. Nunca mais me esqueço, um grande homem, um grande tricolor [alcunha do Fluminense] chamado Tadeu. Ele chegou na quinta-feira e levou-me para o Rio de Janeiro na sexta. Foi tudo muito muito rápido. E eu era novíssimo.

5. Como era a tua vida no Rio de Janeiro?
Xiiiiii, muito boa. Vivia no bairro Flamengo com uma turma gaúcha [três amigos jogadores: Tato, Jandir e René] e as gatas apanhavam-nos de mota à porta do prédio. Também vivi no bairro de Botafogo [com a mesma turma gaúcha mais o paranaense Leomir] e, ao que parece, estivemos para ser expulsos. Acredita que fomos salvos pelas velhinhas? Ao que parece, a síndica [administradora do condomínio] reuniu 100 assinaturas para nos expulsar porque fazíamos festas com barulho e pessoas nuas na varanda. E o que fizeram as velhinhas? Defenderam-nos, disseram a todo o mundo que nós éramos a graça daquele prédio.

6. No Fluminense o Branco ganha projecção e títulos. É o melhor período da sua vida?
É assim, Rui, o time da minha vida é o Fluminense. Porque joguei numa equipa cheia de estrelas, como Washington, Assis, Renato, Ricardo [Gomes], entre outros, porque fomos tricampeões cariocas e campeões do Brasil em 1984, e porque vivi lá o jogo da minha carreira, o jogo perfeito que nos conduziu ao tal título brasileiro de há 30 anos. Foi no Morumbi, com o Corinthians. Eles vinham de uma vitória importante com o Flamengo e nós tínhamos de ganhar. Ficámos hospedados lá no Morumbi e aquilo foi uma noite impossível de se dormir, com tantos fogos [very-light]. De manhã, quando nos juntámos ao pequeno-almoço, jurámos que íamos reverter essa situação. Começámos a dizer uns aos outros coisas do tipo "se eles não nos deixaram dormir agora vamos acordá-los com o nosso jogo". E assim foi, 2-0. Um golo em cada parte. O primeiro até fui eu que marquei o livre para o 1-0 do Tato.

7. E ele meteu a cabeça?
Eheheh, calma, não foi um remate com força. Foi um livre descaído para a esquerda. Bati a bola e o Tato cabeceou para o golo. O 2-0 foi do Assis. O treinador desse Fluminense era o Carlos Alberto Parreira. E esse Fluminense era grande pelo futebol mas também pela camaradagem fora do campo. Nunca vi um time que comesse tanto churrasco e bebesse tanta cerveja. Aquilo era um festival sem fim. Ganhámos muito com isso.

8. Pergunto isso porque há aquela história de teres danificado um defesa escocês (MacLeod) no Mundial-90.
Isso é mito, pura bobagem. Nunca matei ninguém, já ouvi essa história dezenas, centenas de vezes. Muitas vezes o torcedor vem ter comigo na rua e já fala "você matou o cara uma vez". Nem sequer questiona, já diz aquilo como se fosse uma verdade absoluta. Calma, graças a Deus o cara não morreu. Ficou mal porque a bola acertou-lhe em cheio na cara. Perdeu os sentidos e foi para o hospital mas está bem. Quer dizer, nunca mais falei com ele mas sei de fonte segura que ficou bem. Foi só um susto. Já passou.

9. No Mundial seguinte a tua bomba só parou na baliza da Holanda. Lembras-te?
Claro que sim, é o momento-chave da minha carreira. É o golo que todo o brasileiro se recorda. E há pormenores curiosos, como o facto de eu ter saído com a bola na nossa defesa. O Overmars perseguiu-me e levou com uma mãozada no rosto. Era falta, mas o árbitro mandou seguir. Passei o meio-campo e depois por entre dois adversários. Um deles meteu-me a perna à frente e eu nem hesitei: mergulhei para a falta. O árbitro atendeu-me. Atenção que eu nem era titular nessa Copa. O lugar de lateral-esquerdo era do Leonardo, que fora expulso nos oitavos-de-final, com os EUA. Esse jogo com a Holanda é o dos quartos. No livre, a barreira deles era de cinco homens. Peguei bem na bola, com efeito. A curva foi evidente mas também contei com a colaboração do Romário, que tirou o corpo e permitiu que a bola passasse entre ele e um defesa até beijar as redes. Foi um momento lindo, inesquecível. Naquela altura o Brasil só conseguiria marcar à Holanda de bola parada: ou escanteio [canto] ou penálti ou livre. Eles estavam a dominar-nos, depois de terem marcado dois golos para chegar ao empate. Esse livre foi a nossa salvação. E a minha maior alegria. Só o nascimento dos meus filhos supera esse acontecimento.

10. Quantos golos marcaste assim no FC Porto?
Muitos. Além de mim, também havia o Geraldão. Nós os dois batíamos as faltas com muita força e colocação, cada qual ao seu estilo. Os nossos treinos eram divertidos. Para nós, claro. Para os guarda-redes... coitados. Mas nem sempre a bola ia à baliza. Preferíamos marcar golo nos jogos, eheheheheh. No Porto devo ter marcado uns dez [na verdade, 12]. Lembro-me de ter marcado dois de uma só vez [3-1 à União da Madeira, no Funchal]. E lembro-me da minha estreia, com o Vitória, lá em Guimarães, no lugar do Inácio, que se lesionara no jogo anterior. Lançou-me o Quinito. Nessa tarde o Vítor Baía foi o outro estreante do Porto. Sei que fiz história no Porto porque sim e porque vi uma foto do Deco com uma estátua minha no museu. Fomos campeões de Portugal em 1990, um ano depois de ter ganho a Copa América pela selecção brasileira e um ano antes de ter saído para o Genoa.

11. Génova, obrigado por teres falado nisso. Sei de um golo histórico...

Com a Sampdoria, no dérbi de Génova. Eles foram campeões italianos, pela primeira e única vez [90-91], mas não nos conseguiram ganhar em 180 minutos: 0-0 em casa e 2-1 fora. Nesse 2-1, nós marcámos [Eranio], eles empatam [Vialli] e eu faço o 2-1 de livre indirecto. Acredita ou não, aquele golo não foi só meu, foi também de Deus. O efeito da bola, a força do remate e a colocação tiveram ajuda divina. O Genoa acabou essa época em quarto lugar, ainda hoje a melhor classificação de sempre do pós-guerra, e eu diverti-me imenso. Em Génova, os dérbis com a Sampdoria eram vividos com tal intensidade que não se podia sair de casa naquela semana. Tínhamos de ficar em regime de clausura.

in "ionline.pr"

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