sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Gonçalo Paciência: a sombra do pai atrapalha mais do que ajuda

Ricardo Sousa foi o último filho de um ex-jogador do FC Porto a representar o clube e sabe como é viver num mundo de comparações constantes: «Nada do que fazemos parece sufiente»


Quinze anos depois da última vez, o FC Porto volta a ter um filho de um ex-craque da casa a jogar na equipa principal. Gonçalo Paciência escalou paulatinamente a montanha da formação portista, sempre envolto em grande curiosidade, e chegou ao topo: titular em Braga, para a Taça da Liga, num jogo inesquecível por várias razões
  
O avançado, que admite ter realizado um sonho de criança, seguiu as pisadas do pai, com o número 21 a pairar na história de ambos. Gonçalo estreou-se a 21 de janeiro. Domingos fora lançado a 21 de novembro de 1987, num jogo com o Moura, para a Taça de Portugal. 
  
A última vez que o FC Porto olhara para um filho de ex-jogador na equipa principal foi no final do século passado. Em 1999, Ricardo Sousa, filho de António Sousa, estreou-se pelo FC Porto num jogo da Supertaça, com o Beira-Mar…do pai. E que estava naquele encontro depois de o próprio Ricardo ter feito o golo que valeu a vitória na Taça de Portugal, na temporada anterior, frente ao Campomaiorense. 
  
Mais do que a última vez, será mesmo a única (até Braga) em que um filho de um ex-jogador representou também o FC Porto. É António Sousa quem o confirma aoMaisfutebol. «À falta de um estudo exaustivo vou pelo que sempre me disseram e acredito que seja a verdade: antes do Ricardo não havia outro», explica. 
  
No FC Porto já jogara André Castro, bisneto de Francisco Castro, um bicampeão pelo clube nos anos 30. Na equipa B está Francisco Ramos, filho de Vitoriano Ramos, figura do Varzim, que representou os dragões por duas temporadas. O filho de António André, André André, esteve na formação do FC Porto, dá nas vistas em Guimarães e até já foi apontado a um regresso. 
  
Mas o tempo, para já, é de Gonçalo Paciência. Ricardo Sousa, que aos 36 anos ainda joga no Gafanha, do Campeonato Nacional de Séniores, lembra-se bem do seu exemplo. Em conversa com o nosso jornal explica o que para uns pode ser uma vantagem mas que, rapidamente, se transforma numa pressão exagerada. 
  
«As pessoas pensam que o nosso apelido ajuda, mas se calhar até prejudica mais. Quando não temos constantemente uma sombra sobre nós, as coisas são mais fáceis. Quando há essa sombra, as comparações são inevitáveis. Senti muitas vezes que nada do que eu fazia era suficiente. Sentia essa pressão extrema que não me beneficiou em nada», considera. 

«Gonçalo sabe que não pode fazer o mesmo que o pai: tem de fazer mais» 
  
Ricardo Sousa fez cinco jogos pela equipa principal do FC Porto, sempre na época 1999/00. Era um FC Porto pentacampeão e as dificuldades de afirmação foram evidentes. 
  
«A minha afirmação no FC Porto foi prejudicada pelo tempo que se vivia. Era uma altura em que o FC Porto praticamente não apostava em jogadores da casa. Antes de eu chegar, lembro-me que o último jogador a sair dos juniores diretamente para a equipa principal e a afirmar-se tinha sido precisamente o Domingos. Já lá iam mais de dez anos», recorda. 
  
Ricardo fez dois jogos na Supertaça, que na altura era jogada a duas mãos, outros dois na Liga dos Campeões e um no campeonato, frente ao Alverca. Entrou ao intervalo, saiu a 15 minutos do fim. Era Fernando Santos o treinador. 
  
Esquerdino e bom na transformação de livres, as comparações com o pai foram lógicas. A pressão crescia a cada minuto somado. Só o prejudicou. 
  
«Por termos o pai que temos, as pessoas esperam sempre um bocado mais de nós. O que os outros fazem, para nós acaba por não ser suficiente. Temos de dar mais porque estamos sempre a ser comparados. O Gonçalo sabe que não é suficiente fazer o mesmo que o pai. Vai ter de fazer mais, porque vai conviver sempre com as comparações», avisa. 

Pais e filhos na mesma equipa? Recorde alguns casos 
  
António Sousa, por seu turno, acha que as comparações «não são prejudiciais». «Depende muito do caráter do jogador, que sabe que o que vem de fora não pode interferir no seu trabalho. Se o jogador tiver uma personalidade muito própria vai conseguir isolar-se e fazer com que as pessoas se abstraem de comentários como: só joga porque é filho de fulano», comenta. 
  
O treinador, sem clube desde que deixou o Trofense em 2012, admite que «no futebol há alguns favores», mas alerta: «Ninguém vai prejudicar uma equipa por causa de um nome. Seja quem for. Só joga quem tem qualidade. O Ricardo trabalhou para isso, como o Gonçalo agora.» 
  
«Por vezes pode tornar-se mais difícil pelas expectativas que se criam mas, lá está, aí entra o feitio de cada um. O Ricardo impôs-se naturalmente e fez o seu caminho. Mas não somos todos iguais», sublinha. 
  
«Gonçalo não pode cair no erro de tentar imitar o pai» 
  
Apesar de se ter estreado na equipa principal do FC Porto vinte anos depois do pai (Sousa fez o primeiro jogo a 1 de setembro de 1979, frente ao Portimonense), e dez anos depois da saída definitiva do mesmo, Ricardo Sousa ainda foi colega de alguns ex-companheiros de António. 
  
Casos de Vítor Baía, Rui Barros e do próprio Domingos. Jovens quando António Sousa deixou o FC Porto, figuras incontornáveis quando Ricardo a eles se juntou. O balneário portista, de resto, nunca foi problema. 
  
«Em termos de balneário sempre soube gerir. Aliás, cheguei a ter companheiros de equipa no FC Porto que já tinham jogado com o meu pai e quem eu era passava-lhes ao lado. Ajudaram-me sempre. Depois havia os que não conheciam e, portanto, era-lhes indiferente, também. A pressão maior vem da imprensa e dos sócios, sobretudo», explica Ricardo Sousa. 
O médio considera ainda que a política do FC Porto na altura o prejudicou. «Não se apostava em jogadores de 18, 19 anos. Os jogadores só estavam prontos para um grande aos 26, 27 anos. Hoje o negócio está diferente. Basta um jogador fazer dois ou três jogos em condições e o clube, se quiser, consegue vendê-lo logo, por exemplo», atira. 
  
«Felizmente é algo que tem vindo a mudar. Na altura o Benfica e o Sporting apostavam mais em jogadores da casa do que o FC Porto, que passou uma fase onde não ligava à formação. Agora começam a aparecer mais novamente e é bom sinal», completa. 

Sobre Gonçalo, considera que o ponto chave será gerir a enorme expectativa que tem à sua volta: «Basta ver que, mesmo a jogar na equipa B, era um jogador que já criava imensas expectativas. As pessoas queriam saber o que fez, comentam quem ele é, de quem é filho. Vai ter de saber gerir isso tudo, mas tenho a certeza que será muito apoiado.» 
  
António Sousa aconselha «trabalho» a Gonçalo Paciência, frisando que não conhece a sua «personalidade», avisando para o perigo do deslumbramento. «As portas de um grande clube estão abertas. A oportunidade que teve pode ser a primeira de muitas se continuar consciente que o trabalho é a chave», sublinha. 
  
Já Ricardo Sousa diz que Gonçalo «não pode cair no erro de tentar repetir o que o pai fez». 
  
«Que não se preocupe com a sombra que tem atrás de si. Essa vai estar lá sempre, não há nada a fazer. Que trabalhe, porque tem uma qualidade estonteante. Pode ser igual ou melhor que o pai, mas tem que fazer o próprio caminho e acredito que tem qualidade para isso», encerra. 
  
Se o conseguir, para Domingos Paciência a sensação será semelhante à que António Sousa viveu um dia: «Foi ótimo. Uma sensação incrível de satisfação pessoal.»
in "maisfutebol.iol.pt"

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